Em espaços pequenos e apertados, os coelhos ficam imobilizados: objetos de metal impedem os animais de fecharem os olhos, assim é possível aplicar as substâncias diretamente em suas córneas. Sem anestesia, o Teste de Draize, criado na década de 1940 para avaliar a irritação ocular que certas substâncias podem causar em humanos, faz parte do conjunto de experimentos realizados em animais com o objetivo de impulsionar as indústrias de cosméticos, agrotóxicos, fármacos, medicamentos e vacinas.
Com registros que atravessam a antiguidade, a experimentação em animais com fins científicos foi regulamentada no Brasil a partir da Lei Arouca, em 2008, apesar de já ser utilizada antes. A lei é um desdobramento do ativismo iniciado há mais de duas décadas pelo sanitarista e ex-deputado federal Sérgio Arouca (1941-2003). Em 1995 ele apresentou um projeto de lei propondo mecanismos de uso mais ético e racional em atividades de ensino e pesquisa no país, usando como exemplo a legislação estrangeira.
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O projeto tramitou por 13 anos no Congresso até ser aprovado, culminando na lei n° 11.794 [Lei Arouca], que instituiu bases para a formação de uma rede reguladora de métodos alternativos, como o Centro Brasileiro de Validação de Métodos Alternativos (BraCVAM), no Rio de Janeiro. A legislação também criou o Conselho Nacional de Controle e Experimentação Animal (Concea), cujas resoluções se deram todas por intermédio do BraCVAM.
O que justifica a prática de experimentação animal, de acordo com a explicação da bióloga e mestranda em Biologia Animal pela UFPE (Universidade Federal de Pernambuco), Patricia Marques, são as semelhanças dos animais, que costumam ser mamíferos, com os seres humanos.
“Basicamente, quando um produto é novo na indústria farmacêutica e cosmética, por questão de ética e de risco à saúde, ele não é diretamente aplicado em seres humanos. E uma forma de tentar identificar quais são os efeitos das substâncias no nosso organismo é testar em animais que possuem semelhanças genéticas, a exemplo dos mamíferos”, disse, citando ainda o caso dos camundongos, com cerca de 70% de genes em comum com humanos.
Além do roedor, macacos, cachorros, coelhos, bovinos, aves e porquinhos-da-índia também são algumas das espécies mais utilizadas em laboratórios. A fácil reprodução e baixo custo dos animais também costumam ser levadas em consideração. Ainda que setores da ciência argumentem sobre as vantagens envolvidas nos experimentos, eles são cada vez mais questionados por entidades da sociedade civil.
“Existem muitas técnicas que podem substituir os testes em animais, tão eficazes quanto os testes ou até mesmo mais eficazes, a exemplo de cultura de células, o uso de tecidos humanos produzidos com tecnologia 3D, softwares capazes de analisar os efeitos colaterais através de fórmulas, entre outros”, assegurou Marques.
Regulamentação à brasileira
Embora os testes em animais não sejam proibidos no Brasil, para realizá-los os laboratórios devem cumprir uma série de normas. Desde setembro de 2019, por exemplo, as indústrias de cosméticos, medicamentos, brinquedos e até materiais escolares foram obrigadas a adotarem alguns métodos alternativos nos procedimentos com cobaias, conforme determina a resolução normativa do Conselho Nacional de Controle e Experimentação Animal (Concea). O Concea faz parte do Ministério da Ciência e Tecnologia.
Os métodos alternativos são técnicas baseadas em ao menos um dos princípios dos 3 Rs: do inglês, reduction (redução), refinement (refinamento) e replacement (substituição). Os termos têm como objetivo diminuir o número de bichos utilizados, aperfeiçoar as metodologias para reduzir o sofrimento animal e substituir, gradualmente, o uso de cobaias.
No Brasil, pelo menos 24 métodos alternativos foram validados, ou seja, têm eficiência comprovada pelo BraCVAM. O Centro Brasileiro é o primeiro da América Latina a validar e coordenar estudos de substituição, redução ou refinamento do emprego de cobaias em testes de laboratório.
As regras determinam também que todo laboratório, seja ele industrial ou acadêmico, que realiza testes em animais ou métodos alternativos, precisa estar cadastrado no Concea. Para que o registro ocorra, é necessário que cada instituição crie uma Comissão de Ética no Uso de Animais (Ceua), que aprova projetos de pesquisa envolvendo bichos e deve ser formada por cientistas e ao menos um veterinário e um representante da sociedade civil. O mecanismo é considerado um dos maiores avanços da legislação brasileira de proteção animal.
As empresas ou institutos públicos que não cumprirem a determinação podem perder a licença para realizar pesquisa, além de receberem uma multa que varia e R$ 5 mil a R$ 20 mil. Apesar disso, se os métodos alternativos não apresentarem resultados que garantam a segurança do consumidor, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) pode exigir o procedimento com cobaias.
Caminhos menos cruéis
Um dos exemplos mais emblemáticos da criação de alternativas menos cruéis na indústria cosmética foi a inauguração, em setembro de 2019, do primeiro laboratório do Brasil e da América Latina voltado para a “criação” de pele humana para substituir animais em testes científicos de universidades e empresas.
Citada pela bióloga Patricia Marques, a iniciativa do Centro de Pesquisa e Inovação da L’Oréal, no campus da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), na capital fluminense, é especializada em produzir tecidos do corpo humano em 3D. Além de pele, é possível replicar olhos, gengivas e até partes do intestino.
“Essa é uma das opções palpáveis da indústria e funciona como uma prova de que a iniciativa privada consegue desenvolver métodos alternativos, é só querer”, pontua Marques. Para ela, que atua como pesquisadora, as mudanças de comportamento no ambiente educacional público enfrentam obstáculos financeiros.
A bióloga ressalta que “dentro das indústrias, tendo em vista o alto capital envolvido nos processos produtivos, as justificativas para a não implementação de métodos alternativos são poucas”. Já no ambiente acadêmico, os recursos financeiros podem ser limitados em virtude do sucateamento das instituições públicas. “Às vezes, o uso de outras opções para além dos animais tornam-se inválidas por conta do orçamento limitado e falta de investimentos nas universidades”, desabafou.
Substituição no Brasil e no mundo
Estima-se que pouco mais de 190 milhões de animais foram usados para fins científicos no mundo em 2015. No Brasil não há um número consolidado. China, Japão e Estados Unidos são os que mais usam cobaias animais na ciência. Na direção oposta e apontando o caminho, a Europa se destaca pelo número decrescente de cobaias.
A Diretiva 2010/63/EU, que em 2013 estabeleceu regras para o manejo de animais em biotérios e promove testes que causam o mínimo de dor e usam um número mínimo de animais, é responsável pela mudança de comportamento do bloco europeu.
Nesse mesmo sentido, nos Estados Unidos o governo tem pressionado as agências federais de financiamento, como os Institutos Nacionais de Saúde (NIH), para que explorem alternativas ao uso de animais em pesquisas. A exigência se estende ao FDA (agência reguladora de alimentos e medicamentos do país), que nos próximos cinco anos deve apresentar um plano para a redução e aposentadoria de seus macacos.
Além da legislação brasileira de 2008, que estimulou ainda a formação de grupos de pesquisa especializados na criação de métodos alternativos ao uso de modelos de animais, alguns estados criaram seus próprios mecanismos reguladores. Norteados por princípios ligados à proteção da fauna e o crescente movimento “cruelty-free” (sem crueldade), Pernambuco, São Paulo, Amazonas, Espírito Santo, Amazonas, Santa Catarina, Mato Grosso do Sul, Paraná, Pará, Minas Gerais e Rio de Janeiro passaram a legislar e a proibir os testes em animais.
É certo que o uso de cobaias segue indispensável em determinadas pesquisas, todavia, o avanço das tecnologias parece certeiro em confirmar: o bem-estar animal é, também, uma questão de ciência.