##RECOMENDA##
Marco Zero do Recife é uma praça que marca o local onde nasceu a cidade, à beira do Cais do Porto (Foto: Rafael Bandeira/LeiaJáImagens)
Adrian tem 13 anos e é morador da Ilha de Joana Bezerra, popularmente conhecida como comunidade do Coque, localizada a cerca de dois quilômetros do Marco Zero do Recife. Pelo menos três vezes por semana, de sexta a domingo, o adolescente se encontra aleatoriamente com colegas, e sem dinheiro para pagar a passagem, entram pela parte traseira dos ônibus. O grupo segue rumo ao centro da capital pernambucana, principal ponto de lazer para eles. A parada obrigatória é no Cais de Santa Rita, onde descem do coletivo e andam mais alguns minutos até chegar ao Marco Zero.
A mureta que divide a maré da área turística do Marco Zero serve como um trampolim de concreto.
Sem trajes específicos de banho ou toalhas para secar, eles pulam de cuecas, calcinhas, calções e sem camisa. O importante é garantir um pulo após o outro, um movimento diferente com o corpo, por vezes ousado, os quais eles apelidam em uma linguagem própria. “Tia, olha esse pulo do mata-boi”, e ele se joga na água com a leveza de quem deixa o corpo ser levado pela espontaneidade do momento.
Adrian mostrando um de seus saltos favoritos. (Foto: Chico Peixoto/LeiaJáImagens)
Crianças, homens mais velhos, adolescentes e algumas mulheres entram na brincadeira e dividem espaço com os barqueiros que naquele mesmo local atracam os barcos e jangadas para atravessar principalmente os turistas ao lado outro lado do rio, no Parque das Esculturas Francisco Brennand. Para Adrian, os mergulhos profundos, os saltos quase nunca ensaiados e o contato com a água são parte de sua rotina e uma das únicas opções de lazer dele e de seus amigos. “Onde eu moro é muito violento, minha mãe está tentando se mudar de lá, mas a gente não pode brincar lá por enquanto”, confessa.
O Marco Zero é parte principal do roteiro de Adrian desde os nove anos. Ele mora com cinco irmãos, a mãe, vendedora de coxinha, e o pai, serralheiro. Faça sol ou chuva, o garoto não dispensa os saltos no rio e as partidas de futebol em pleno centro do Marco Zero. “Se eu pudesse estava aqui todos os dias, mesmo já tendo me machucado com um bicho, acho que o nome é água viva. Me queimou muito. Mas, já tentei mergulhar em uma piscina de verdade no Sport, só que o vigia botou a gente pra fora porque pulamos o muro. Aqui é mar aberto e mesmo com sujeira não tenho medo”, relata o adolescente que sonha em ser engenheiro ou comissário de bordo.
Quem passa com frequência pela praça que marca o local onde nasceu a cidade já deve ter visto crianças pulando no rio. É comum e já se tornou uma atração à parte no local. Turistas pedem para bater fotos e eles posam para as fotografias, um desafiando o outro. Mas, a brincadeira das crianças é ameaçada pelos agentes de segurança pública da capital. De acordo com Adrian, ele e seu grupo já foi retirado do local em várias ocasiões, até por homens fardados como sendo do Exército Brasileiro.
“A gente só fica aqui pulando e até os barqueiros são amigos. Mas os homens chegam gritando aqui e mandando a gente ir embora. Já levei uns tapas e até spray de pimenta já jogaram na gente. Tia, queria que tu filmasse um dia”, conta Adrian entre um pulo e outro.
Os amigos e moradores da comunidade do Coque jogam uma partida de futebol no Marco Zero. (Foto: Chico Peixoto/LeiaJáImagens)
Praticar esportes se tornou um hábito de fuga da rotina cansativa do estudante Rodrigo Lima, de 18 anos. A poucos metros de Adrian, o jovem sobe em seu skate e faz manobras típicas de iniciantes, mas das quais se orgulha. Desde 2015, ele pratica o esporte no centro do Recife, mais especificamente na praça do Marco Zero, onde consegue reunir amigos e entusiastas do skate de rua.
Negro e periférico, Rodrigo diz que a prática do esporte é proibida na praça e já sofreu diversas intimidações, abordagens com ‘baculejo’ e ordens de sair com seu grupo do local. “Os policiais só focam no grupo que está andando de skate, isso é puro preconceito e racismo porque a gente não fica fazendo bagunça, treinamos e nos divertimos”, lamenta o estudante.
Ele relembra que em 2017 estava com os amigos próximo ao píer da praça e foram abordados pela PM. “Bota a mão na cabeça, quem for de menor vai pra delegacia”, eles diziam. “Eu não vejo sentido nessa proibição do nosso lazer, têm pessoas que só vêm curtir aqui e porque nossa pele é escura já acham que somos ladrões. Ainda tem o racismo dos turistas que quando chegamos perto, escondem o celular”, diz.
A favor da prática do esporte no Marco Zero, Rodrigo diz que todos devem ter a liberdade prevista na lei. “Em muitos bairros não há esse espaço de coletividade e por isso estamos aqui”, conta.
Rodrigo diz que é a favor da prática do 'skate' na praça. (Foto: Rafael Bandeira/LeiaJáImagens)
Para a pesquisadora Camila Klein, em sua dissertação "Experiências afetivas urbanas: a relação dos habitantes com sua praça central", os espaços urbanos captam a atenção das pessoas e passam a fazer parte que têm da cidade. "Estes possuem uma identidade que os distingue e os destaca do contexto, ao mesmo tempo em que se relacionam com o observador e o entorno. Além disso, possuem um significado, que denota uma implicação emotiva e/ou funcional para a pessoa. A praça pode, além dos aspectos cognitivos e funcionais, congregar memórias, simbolismos e afetividade ao mapa mental que o habitante constrói em suas vivências na cidade".
O Marco Zero é conhecido como um local de integração, em que diversas ‘tribos’ se encontram, principalmente nos fins de semana. É também onde acontecem os grandes eventos do carnaval pernambucano. Mas, atualmente, o uso desse espaço público para a pausa, o encontro, a diversão e o perambular na cidade sinaliza resistência.
Em meados dos anos 1990, o bairro passou por um processo de requalificação no intuito de transformar o bairro num cenário cultural e de consumo, principalmente em lugar de atração turística. Foram implantados serviços relacionados à cultura e lazer, além da chegada de investidores imobiliários. Em 1998, o Bairro do Recife foi tombado pelo IPHAN como patrimônio nacional, devido ao reconhecimento de arquitetura eclética, característico da urbanística francesa no Brasil. Em 2015, inaugurou um novo espaço integrado de entretenimento e gastronomia, os Armazéns do Porto, ao lado da praça do Marco Zero.
De acordo com o professor de Arquitetura e Urbanismo da UFPE Tomás Lapa, o Recife Antigo é palco de um processo de higienização e táticas segregacionistas. “Todos esses processos de revitalização tendem a privilegiar certas camadas, o que podemos chamar de gentrificação, em que se expulsa a população pobre para ser substituída por outros usuários que tenham um maior poder aquisitivo e aparência para frequentar e habitar esse lugares”, pontua o pesquisador autor do livro “Grandes cidades constroem-se com edifícios grandes?”.
Além do risco nas relações de afeto e lazer com a praça que nos remete às origens da capital pernambucana, o vínculo das pessoas que precisam trabalhar no local para garantir o sustento também passa por incertezas.
Leu, a artesã com mais trinta anos de carreira, conseguiu na luta o direito de vender sua arte no local. (Foto: Chico Peixoto/LeiaJáImagens)
A comerciante Edileuza Gomes, de 54 anos, conhecida como “Leu”, estende um pano improvisado no chão, e expõe seu artesanato também de sexta a domingo, das 10h às 22h, no Marco Zero. Brincos, colares e pulseiras são feitos manualmente pela artesã, que trabalha no ramo há mais de 30 anos, mas escolheu o Marco Zero como um de seus pontos de venda há quatro anos.
Atualmente, Leu trabalha com mais tranquilidade, mas o “pé atrás” nunca deixará de existir. Há dois três anos, ela e amigos artesãos se viram desesperados porque um dos principais pontos de comércios estava ameaçado por uma política de ordenamento da Prefeitura do Recife. “Os fiscais vinham e mandavam a gente sair daqui, chamavam até a polícia. Eles nos tratavam de maneira hostil, com racismo e preconceito. É como se a gente fosse qualquer marginal e isso me fazia sentir um lixo, assim como meus amigos porque a gente só estava trabalhando e vendendo nossos produtos”, lamenta a artesã.
Leu complementa ainda que as expulsões ganharam força após as inaugurações dos restaurantes dos Armazéns do Porto, que tinham o intuito de revitalizar a área do centro histórico e torná-lo um ponto comercial. “A gente já trabalhava por aqui e os donos dos bares não queriam nossa presença porque diziam que isso prejudicaria a circulação de turistas. Muito preconceito com nossa classe porque ninguém atrapalhava, pelo contrário, ocupava essa área com mais diversidade. Só depois de muita luta, conseguimos permanecer aqui com autorização”, pontua.
Em seu livro “O espaço crítico”, o pesquisador e urbanista francês Paul Virilio faz uma análise sobre o traçado simbólico de demarcação, sem portas físicas de entrada ou saída, mas estruturas menos aparentes e mais sutis, porém igualmente práticas, constrangedores e segregativas. “Redesenham uma paisagem fortificada e enobrecida, numa metáfora de um passado de guerras e invasões que se confunde com um presente marcado pela exclusão e violência”, explica o estudioso Rogerio Proença Leite, em seu artigo “Patrimônio e enobrecimento no Bairro do Recife”.
A pipoqueira diz que vai resistir às ordens de retirada até que tenha seu material levado. (Foto: Rafael Bandeira/LeiaJáImagens)
A vendedora Rose, 32, que preferiu se identificar apenas com o primeiro nome, vive no Alto José do Pinho, em Casa Amarela, na Zona Norte do Recife. Todos os dias vende pipoca feita na hora no Marco Zero. Ela diz que é uma resistência diária porque é sempre intimidada por fiscais da Prefeitura do Recife para retirar sua carroça da região central do Marco. “Eles dizem que não pode trabalhar aqui e que se me pegarem de novo, vão levar meu material e terei de pagar para recuperar tudo”, denuncia.
A comerciante alega que o cenário piorou e as vendas caíram porque os fiscais retiram o pessoal e proíbem a circulação. “A gente só pode ficar parado do outro lado da rua, mas lá quase não passam pessoas. Eles só liberam em tempos de Carnaval. Mas, não sigo essa regra porque essa é a minha renda e se eu não vender, não alimento meus três filhos”, complementa.
“Passamos por um período de muita violência e miséria por causa do desemprego, é difícil identificar quem é bom ou mau, então esse é um processo que se repete. A expulsão dessas populações porque o que os gestores visam é um espaço acolhedor, bonito e limpo para os turistas e as elites”, explica o professor Tomás.
Procurada pela reportagem do LeiaJá.com, a Diretoria Executiva de Controle Urbano do Recife (Dircon) informou que tem trabalhado desde 2013 para a melhoria do ordenamento e da mobilidade para a população. De acordo com a gestão municipal, no caso do Marco Zero, no Bairro do Recife, foi realizado um cadastro em 2015 e todos os ambulantes da área foram cadastrados (o número total é de 180 cadastrados). "Os vendedores foram orientados que poderiam permanecer nas ruas do Bom Jesus, Barbosa Lima e Vigário Tenório, desde que com equipamentos permitidos pela diretoria. Desde então, a fiscalização faz rondas na área para coibir a ocupação desordenada, que atrapalha a passagem das pessoas. Em caso de flagrante de irregularidade, depois de notificados, os ambulantes podem ser multados e ter o material apreendido. A Dircon desconhece atitudes intimidatórias por parte dos fiscais e reitera o compromisso com o diálogo com os trabalhadores", nota enviada à imprensa.
Já a Polícia Militar de Pernambuco explicou que a denúncia de intimidações e violência com os adolescentes não é de conhecimento do comando do policiamento da área. "Não há orientação para que o efetivo escalado no bairro trate qualquer cidadão de maneira diferenciada ou descriminatória. Além do que, esse tipo de conduta não reflete o pensamento da Corporação".
A assessoria de comunicação da PMPE informou ainda que os órgãos de correção, a exemplo da Corregedoria Geral da SDS, "seguem à disposição de todos que se sentirem ofendidos por qualquer postura dos nossos profissionais, para que procedimentos inadequados possam ser devidamente apurados".