Distante das políticas de lazer, as crianças da Vila Santa Luzia, comunidade no bairro da Torre, estavam fadadas a observar de longe o desenvolvimento urbano da Zona Norte do Recife. A região tomada pelos imóveis mais caros da cidade soma parques públicos. Em contrapartida, a infância local mergulha no Rio Capibaribe para emergir com o sustento, facetando trabalho em diversão. Inquieto com o que via da sua janela, o marceneiro Claudemir Amaro da Silva construiu uma possibilidade para que os pequenos pudessem sonhar. Ao longo de 12 anos, seu esforço vem se materializando em um espaço sustentável de ‘brincadeira, alegria e amizade’.
O pedaço de chão envolto pelo mangue abriga uma biblioteca, uma horta comunitária e diversos brinquedos. Antes, o local era tomado por palafitas, quando uma ação da prefeitura retirou as famílias da condição de risco, mas não propôs nenhum projeto à comunidade. Cheio de atitude e com pouca ajuda, Claudemir começou a capinar o ‘mato’ ao passo que plantava árvores no seu tempo livre. Porém, o germinar das plantas ainda era muito pouco.
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Para ele, a retirada das moradias, em 2007, não havia transformado a vida na Vila efetivamente. "Eu fiz uma área para as crianças daqui, que os pais não têm tempo de ir para um parque distante e deixar o menino sozinho. Aí os meninos têm que ficar de frente para o celular, acabando com a visão. Isso aqui é para elas brincarem e ter infância. Isso é importante", explica.
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Cada palavrinha tem um significado
"Pensei num lugarzinho maravilhoso que é esse aqui. Olha que sombra", convida o marceneiro, sem esconder o orgulho de idealizar a RioTeca. O nome veio junto com os primeiros livros doados, que hoje, tomam conta da pequena instalação feita com tábuas. "Com a leitura a gente aprende a ser sábio e viver a vida. A RioTeca é o ponto de tudo", destaca enquanto varre e limpa o pó das prateleiras de caixote.
À princípio, a biblioteca era destinada aos pequenos, mas a expectativa foi superada com a visita de ‘pessoas de fora’, atraídas pelo acervo. Estudantes universitários e concurseiros também vão ao cantinho em busca de calmaria e referência para os estudos.
"Não tem coisa melhor que ver uma criança lendo um livro, folheando sozinha. Isso é que dá mais força ainda de fazer as coisas aqui, ver uma criança querendo aprender alguma coisa pra no futuro ter uma vida melhor”, conta entre sorrisos. "As pessoas também têm que ter respeito pelas crianças. A gente tem que educar de alguma forma, sem grosseria. Ninguém quer uma pessoa com grosseria pro seu lado. Aqui é um lugar de educação", avalia Claudemir.
Muito do apreço que conserva pela garotada e a ligação com o rio é fruto do passado de subsistência na Zona Canavieira de Rio Formoso. Sua diversão também foi privada e seu brinquedo era uma foice para cortar cana-de-açúcar junto ao pai, morto ao se afogar em um rio, quando Claudemir tinha apenas 10 anos. Desde então, o primogênito de quatro irmãos assumiu o posto e aos 16 mudou-se para a capital, embalado pelo desejo de melhorar a condição da família.
Um pé de mesa vira a alegria de todo mundo
Já no Recife, ele lembra que fugiu ao conhecer uma serra elétrica e chegou a acidentar um dos chefes pela falta de experiência. Entretanto, teimava em não desistir e, a caminho do serviço, percebia que havia valor nas lixeiras. Os itens que "a turma jogou fora" passaram a ser revitalizados pela vontade de ressignificar aquele espaço em prol do bem comum. "Onde eu passo numa calçada, se eu ver uma cadeira, um pé de mesa ou alguma coisa, eu trago já pra consertar e fazer a alegria de todo mundo", descreve.
O marceneiro relembra a alegria da sua primeira doação. Um dos irmãos é zelador e ligou para Claudemir à pedido da síndica, que queria pagar R$ 100 para alguém se livrar de um antigo brinquedo do residencial. "‘Tu vai querer? Eu Quero!”, respondeu prontamente. Já com o arco de serra e uma chave à postos, desligou o telefonema e, sem avisar, foi atrás do ‘lixo’. O irmão ficou surpreso com a recusa a quantia. "Eu não queria nada da síndica. Só queria o brinquedo. Aí meu irmão: 'pega o dinheiro, ela não quer pagar a tu?' Quero não", respondeu entre os cumprimentos aos visitantes da RioTeca.
Aos poucos a biblioteca crescia e o parque vinha cumprindo seu papel social. Tanto que até hoje, livros e brinquedos são doados e passam pelos reparados do marceneiro. Apontada para a educação, a ideia do parque partiu do entendimento que o conhecimento só é pleno se for divertido. Escorrego, pula-pula de pneus, balanço e casa da árvore eram as atrações da criançada do bairro e logo chegaram pedidos para realizar eventos na pracinha.
Madeira que cupim não rói
Os esforços de Claudemir se popularizaram na comunidade e geladeiras quebradas ganharam uma cara nova para equipar uma cozinha humilde. Devido a demanda de pedidos, ele controla o fluxo das festas de aniversário, chá de fralda e demais comemorações com seu caderninho, "as crianças não querem nem saber de comer, só querem saber de brincar", conta. Em troca, fixou apenas uma regra: "eu entrego [o local] limpo e peço limpo de volta. Não custa nada a pessoa sujar e limpar".
Detentor da admiração e da gratidão da Vila Santa Luzia, Claudemir lamenta que a RioTeca foi ameaçada em 2018. No mês de maio, policiais militares e uma equipe da Brigada Ambiental notificou o local como construção irregular. “Então eu tô errado de plantar árvore?”, questionou ao reforçar que o esgoto é despejado no Rio Capibaribe.
"Eu batalhei 12 anos e não tive ajuda. Aí o poder público querer tirar um negócio que é pra todos nós viver em paz, em harmonia um com o outro e fazer amizade? Isso é maravilhoso pra mim e não tem coisa melhor do que ver a alegria estampada no rosto do outro", comenta.
Ao lado do advogado, foi à sede do órgão ambiental para lutar pela RioTeca. "Se vai sair ou não, eu sei que a população aqui tá do meu lado. Enquanto vocês não fazem uma coisa boa aqui, a coisa boa é esse lugar para estudar", disse aos agentes. Perguntado se teme sofrer novos embargos, ele ressalta a união da comunidade e a força das redes sociais para impedir. "Vou juntar com a população e a gente vai ter que fazer uma barreira para proteger a leitura", sugere.
Os sonhos para o espaço fluem com o rio
Perguntado sobre o futuro da RioTeca, Claudemir foi categórico, "tenho tantos sonhos que não cabem dentro de mim". Todos os recursos vêm dos lixeiros ou do próprio bolso, contudo ele sente falta de companheiros para tocar o projeto. "Não tem gente empenhada em ajudar. Então os moradores deveriam se empenhar mais uns com os outros para cuidar de um espaço lindo desse, que você pode colher um remédio pra um filho a noite", pontuou apresentando a horta.
Dentro do cercado, a beleza das borboletas colore o local, no entanto, ele lamenta o desinteresse, “tem gente que só vem pra colher”. A horta lhes rende plantas medicinais, frutas - como abacaxi e maracujá -, além de verduras e hortaliças.
Com o desejo de expandir a RioTeca, um dos ‘tantos sonhos’ de Claudemir é promover um ‘dia de educação’. Ele requisita parceiros para instruir a molecada. "É muito raro ter um voluntário, mas não será possível que um dia não apareça um né? Era para ter mais gente pela quantidade de criança que vem aqui, mas com o passar do tempo, vamos começar a educar essas crianças da comunidade", planeja enquanto contempla um grupo de crianças aos risos, correndo entre as instalações da sua obra.