Na tarde desta segunda-feira (16), um protesto que leva o nome de “Ato-xirê contra o racismo religioso” está marcado para acontecer no bairro da Madalena, Zona Oeste do Recife (PE). Os manifestantes farão uma caminhada ao longo do Túnel da Abolição, onde um mural pintado pelos artistas negros Adelson Boris, Emerson Crazy e Nathê Ferreira foi alvo intolerância religiosa praticada por um pastor evangélico.
A mobilização é capitaneada pela Articulação Negra de Pernambuco (ANEPE), em conjunto com outros grupos do movimento negro, e visa cobrar posicionamento dos órgãos públicos frente ao episódio classificado como um exemplo de racismo religioso.
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O painel “Do Orum ao Aiye: Afrika Elementar” foi feito com incentivo da Secretaria-Executiva de Inovação Urbana, que através do projeto “Colorindo o Recife” passou a criar galerias de arte a céu aberto com a participação de artistas. A obra, inaugurada em julho, reflete elementos da cultura e religiosidade afro-brasileiras, funcionando como uma espécie de memória ancestral cartografada na cidade.
“É muito triste essa impunidade”
Ainda durante o mês de julho, o pastor Aijalon Berto, que atua na área de Igarassu (PE), na Região Metropolitana do Recife (RMR), usou as redes sociais para divulgar um vídeo, em tom impositivo, no qual proferiu ofensas aos artistas que compuseram a obra no Túnel da Abolição.
Apoiado no pressuposto da laicidade religiosa e da liberdade de expressão, Berto fala em “bruxaria” e “portal demoníaco” ao citar a obra, além de associar os orixás - divindades cultuadas nas religiões de matriz africana e afro indígena - à “feitiçaria”. O pastor usa ainda imagens dos autores do mural para incitar o discurso de ódio.
Para Nathê Ferreira, grafiteira e uma das artistas atacadas pela fala do líder religioso, além da violência presente no vídeo, há também o desejo de autopromover-se através da propagação de notícias falsas. A fala da artista reforça que “ele [Aijalon Berto] insistiu para que o argumento dele chegasse onde queria, e, inclusive ele inventou coisas que não existem”.
Embora o objetivo do mural seja ilustrar os elementos ar, terra, ar e água, o modus operandi do pastor foi apresentar informações inverídicas sobre as pinturas, associando todo o trabalho às representações de matriz africana. No vídeo, Berto chegou a inventar uma entidade inexistente.
“Por que isso não dá em nada? Por que ele não é preso? Por que ele não paga indenização a nenhuma das vítimas? É muito triste essa impunidade”, desabafou Nathê, que durante a fala também compartilhou o medo que o episódio de racismo trouxe. Os artistas estão recebendo apoio jurídico para levar o caso adiante.
Injúria racial ou racismo?
Segundo Priscila Rocha, integrante do setor jurídico da Articulação Negra de Pernambuco, que está acompanhando o caso, a intenção dos advogados à frente do processo é tipificar as declarações do pastor Aijalon Berto como racismo. Os profissionais estão atuando de maneira voluntária.
“O que acontece na maioria dos casos é que todo esse racismo contra uma pessoa ou contra uma religião de matriz africana e toda sua cosmologia é reduzido a injúria racial, que é um crime de competência privativa e exclusiva a um afeto próprio, um afeto particular. Quanto ao crime de racismo, ele é voltado a uma coletividade”, explicou Rocha.
O objetivo da assessoria jurídica das vítimas é apresentar uma "notitia criminis”, ou “notícia crime” para embasar a denúncia. “A partir dessa notícia crime, que vai reunir todas as representações sobre o caso, dos movimentos sociais, dos partidos políticos, dos movimentos negros, vai acontecer a apresentação à delegacia responsável pelo caso e para Ministério Público [MPPE], solicitando que uma investigação seja aberta e também que se faça a oitiva, ou seja, a ouvida das pessoas que foram ofendidas e do ofensor”.
Além disso, também haverá uma representação na esfera cível solicitando a retirada do conteúdo publicado pelo pastor das redes sociais, sob pena de multa, já que veiculam as imagens dos artistas de maneira não autorizada pelos mesmos. A advogada ressalta ainda que o grupo jurídico solicitará indenização por danos morais e materiais aos representados.
“Não vimos nos Evangelhos Jesus perseguir pessoas de outra religião”
Em nota, o Movimento Negro Evangélico (MNE) em Pernambuco afirmou que “repudia veementemente a publicação e postura de propagação ao racismo, ódio e desrespeito às tradições de matriz africanas à profissionais negras e negros da área do grafite, perpetrada pelo dito então pastor Aijalon Berto na sua página pública no Instagram”.
“O Evangelho vivido e ensinado pelo Mestre Jesus Cristo aponta para o caminho do respeito à dignidade e liberdade humana: A 1ª Carta de João 4.12-21 diz que aquele que diz que ama a Deus, mas odeia seu irmão é mentiroso. Não vimos nos Evangelhos Jesus perseguir pessoas de outra religião. Pelo contrário, Jesus admoestava e denunciava as condutas hipócritas dos da sua própria religião. Jesus não falava contra outras religiões ou profissões de fé”, continua a nota.
Para Jackson Augusto, Integrante da coordenação nacional do MNE, a importância do posicionamento diante do mais recente episódio é “dizer que existe uma outra forma de construir a experiência da fé evangélica que não seja baseada no racismo, que vai construindo a lógica em toda a sociedade, inclusive na religão, e que olha para tudo que pertence ao povo negro, que tem o protagonismo negro, como ruim, como feio, como profano, como diabólico”.
“Existem sim formas de olhar para a fé evangélica e de construir a fé evangélica de uma maneira não só que tolere o diferente, o outro, mas que também promova e valorize a importância das religiões de matriz africana para a construção da negritude brasileira”, completou.
O que diz a Secretaria-Executiva de Inovação Urbana
A equipe do LeiaJá questionou a Secretaria de Inovação Urbana sobre o futuro do projeto “Colorindo o Recife”, já que no dia 2 de agosto, de acordo com o Diário Oficial, o secretário da pasta, Tullio Ponzi, foi exonerado do cargo.
Nós também perguntamos se a saída de Ponzi da pasta tem alguma relação com a polêmica gerada em torno do caso de intolerância religiosa. Confira a resposta da secretaria:
A Secretaria Executiva de Inovação Urbana do Recife informa que o painel do Túnel da Abolição, no bairro da Madalena, é mais uma das intervenções do programa Colorindo o Recife, que está ressignificando áreas e equipamentos públicos da cidade por meio da arte urbana.
A proposta do programa é fazer da capital pernambucana uma grande galeria de arte a céu aberto, trazendo mais cores e vida para a cidade e promovendo o protagonismo dos artistas urbanos. A Secretaria destaca ainda que os painéis do Túnel da Abolição foram criados pelos artistas Adelson Boris, Nathê Ferreira e Emerson Crazy, que escolheram a cultura afrobrasileira como inspiração. Os temas abordados em cada painel são frutos de uma construção colaborativa entre a Prefeitura e os artistas.
Todos os artistas do Colorindo o Recife são selecionados a partir de cadastro realizado através de chamamento público e terão sua liberdade de expressão asseguradas pela gestão. A administração municipal reafirma sua posição contra a intolerância religiosa e em defesa da diversidade.
O programa Colorindo o Recife foi criado em 2013 e, desde 2017 se tornou política pública da cidade, fomentando a arte urbana e promovendo interação com os espaços públicos, reinventando o olhar de turistas e moradores da capital pernambucana. Criado sob a gestão da então Secretaria de Turismo, Esportes e Lazer (Seturel), atualmente a iniciativa está sendo desenvolvida pela Secretaria Executiva de Inovação Urbana e já conta com intervenções artísticas em mais de 200 espaços urbanos da cidade desde sua criação.
A Secretaria Executiva de Inovação Urbana esclarece ainda que o Colorindo o Recife segue com suas atividades normais e que o ex-secretário foi exonerado, a pedido, conforme publicado no D.O, sem qualquer relação com o episódio citado.