Se eu dissesse a Clávio que ia escrever a orelha do seu livro, ele diria:
—Orelha? Nem pensar. É a parte mais feia do corpo humano, faz parelha com o nariz e enfeia ainda mais o cabra velho, já feio.
—Então Clávio, argumentei, que tal uma conversa de pé-de-ouvido, um cochicho, sussurros, irreverências compartilhadas, causos que você foi mestre em contar?
Ele assentiu com um sorriso maroto.
—Desta vez, ouça, sem direito à réplica. E aí mandei o verbo sem a amargura do artigo “Clávio, doeu demais”.
Clávio, sua passagem pela vida foi luminosa, tão luminosa—enfatizei — que a luz continua acesa. Descobri de maneira simples: lembrando-me dos nossos encontros. Sempre em festas, no Paraquedista Real, nos encontros boêmios regados a salivas temperadas com uma cervejinha e com um detalhe que sempre me chamou a atenção: você e Iana, sempre juntos, formavam uma dupla de marido e mulher que ia muito além do lugar comum o "casal perfeito". Eram muito, mas muito mais que isso. Vocês formavam uma autêntica fusão, uma unidade espiritual, carnal, afetiva e divinamente indissolúvel, tanto assim que a morte não os separou.
Não sou um herético: foi Deus quem uniu.
De verdade— amigo—hoje olho para Iana, penso em Clávio, ali juntos, de mãos de dadas; encontro Iana, vejo Clávio de mãos dadas para além do sempre. E ali, “fiat lux”, a luz acendeu quando a compreensão mútua enxergou que o famoso boêmio era, tão somente, um brincante com a liberdade. Boemia e liberdade são irmãs gêmeas e, se forem, assim entendidas, estará selado um pacto de verdade, prazeres mútuos, e alegria de viver sob o pálio da força do amor que se desdobra nos nobres sentimentos da amizade e do companheirismo.
O meu cochicho —Clávio —é para dizer que a moça prendada que conheci na Torre, ainda adolescente, transformou-se na mulher de beleza e elegância aprimoradas pela maturidade, com o passar dos anos, e capaz de dar, como deu e recebeu, amor sem conta.
Você conheceu de perto —tenho certeza — a força solidária de sua mulher nos momentos de sofrimento e agonia que eram enfrentados sem uma compreensível palavra de descrença ou revolta frente aos mistérios do Destino. A sua vontade de viver encarou corajosamente a frieza das Parcas.
Sua luz se derrama não somente sobre ela, mas sobre seus filhos, netos de sangue ou apesar do sangue, conquistando cada um deles com mimos, gentilezas—essa carência universal—, ora contando histórias, ora extravasando o menino que você nunca deixou de ser, ora com o agrado diário de colocar na bolsa de Iana um Sonho de Valsa, a guloseima que lhe adoçava o paladar e temperava o gosto pela vida.
Você, com um jeito único de ser, foi um elo que não sóaglutinou como deu sentido especial a um núcleo gerador de gente capaz de viver e conviver, chamado família.
Vou terminar o cochicho. Este livro tem coautores: a família ampliada e um contingente de amigos com quem você divide uma saudade que, quando pende para tristeza, basta contemplar o seu semblante perpetuado por Fernando Florêncio.
Agora, não é mais conversa em tom confessional. Com a palavra, filhos, filhas, netos, abrigados em justas e igualitárias glebas no latifúndio cardíaco de Clávio, recitando em harmonia de jogral, uma prece de louvor e gratidão.
De resto, ficam o livro de sentimentos, gente vivendo de saudade e...VOCÊ, INTEIRO!
PS. Este texto integra o livro 60 crônicas e uma petição de autoria de Clávio Valença (In memoriam), lançado no sábado, 16/5, no restaurante D. Pedro.