A estudante de Pedagogia Remís Carla Costa, de 24 anos, antes de ser assassinada pelo companheiro já vinha sendo vítima de violências do mesmo. Quando decidiu denunciar Paulo César Oliveira da Silva por agressões, a experiência na delegacia foi como uma extensão da violência que Remís pretendia relatar. Ao invés de oferecer acolhimento adequado a uma pessoa fragilizada, a polícia entregou um atendimento grosseiro, lento, intimidador e desdenhoso.
A história daquele 23 de novembro de 2017 está em um forte relato escrito por Jéssika Alves, amiga próxima de Remís. O LeiaJa.com traz este e mais alguns casos de mulheres que decidiram não se silenciar e procurar apoio das instituições de segurança, mas que acabaram vivendo uma experiência muito ruim por causa de policiais despreparados.
##RECOMENDA##
Remís Carla Costa, 24 anos - Na Delegacia da Mulher de Santo Amaro, no centro do Recife, a estudante foi constantemente incentivada a desistir da denúncia de lesão corporal, crime de dano, injúria, ameaça e cárcere privado. "Tem certeza que você quer fazer isso? É muito burocrático, você vai ter que ir em muitos lugares" e "Por que você não largou esse homem?" foram algumas das frases que Remís precisou ouvir, segundo relato da sua amiga.
O procedimento era lento. Remís e Jéssika foram informadas que precisariam se deslocar sozinhas ao Instituto de Medicina Legal (IML) para exame de corpo de delito. Lá, a vítima entra só em uma sala. "O perito perguntou porque foi que eu não vim ontem, que foi o dia da agressão, esfregou minha roncha e perguntou se eu não tinha pintado de caneta", teria dito a jovem ao sair da sala.
Elas voltaram à delegacia para solicitar a medida protetiva. Foram horas de uma espera angustiante em um ambiente nada convidativo. O pedido de proteção seria encaminhado para um juiz fazer a liberação e demoraria cerca de dez dias, apesar da Lei Maria da Penha informar que o delegado deve remeter o pedido ao juiz para que este aprecie em até 48 horas.
Remís foi assassinada pelo companheiro no dia 17 de dezembro na residência dele, no bairro da Várzea, Zona Oeste do Recife. A Polícia Civil disse que Paulo César não foi notificado da medida protetiva porque não foi localizado pela Justiça. Confira o relato completo de Jéssika Alves:
[@#video#@]
F.N., 35 anos - Moradora de uma comunidade pobre de Jaboatão dos Guararapes, no Grande Recife, a doméstica F.N. era vítima de violência psicológica constante praticada pelo companheiro. Mãe de duas crianças e grávida do terceiro filho, ela era verbalmente agredida na frente de todos.
"Ele tratava a mulher como se fosse uma serviçal", conta a amiga que levou F.N. até a polícia. Com o passar do tempo, a situação ficou mais crítica. O marido chamava a companheira de 'burra', dava empurrões e a puxava pelo cabelo.
Um dia, F.N. teve uma trombose. No celular da amiga, havia dez chamadas telefônicas não atendidas. Era a doméstica pedindo socorro. Do quarto, o marido gritou "é frescura".
Na 2ª Delegacia de Polícia da Mulher, na Estrada da Batalha, em Jaboatão, a doméstica foi recebida por um policial. "Você não percebeu essa situação antes? Por que demorou esse tempo todinho?", ela ouviu.
As perguntas eram feitas logo na recepção, na frente de outras pessoas. "O senhor vai fazer a ouvida aqui mesmo? Não tem sala adequada?", a amiga cobrou.
F.N. foi levada para uma sala para dar mais detalhes pessoais. Foi nesse momento que o policial que a atendeu deu em cima dela. "Ela saiu dizendo 'cheguei lá, o policial ficou se insinuando para mim, disse que qualquer coisa eu podia ligar para ele, anotou o número no papelzinho, ficou dando em cima de mim. Eu já estava numa situação difícil, suando frio, que absurdo'", lembra a amiga.
T.C., 29 anos – Em outubro, a mulher, que tem o costume de dormir despida, acordou com um pedreiro na janela, lhe encarando. O condomínio onde mora, em Boa Viagem, na Zona Sul do Recife, passava por obras, mas em local distante, o que faz T.C. pensar que o homem possa ter premeditado aquilo.
Ela procurou a Delegacia de Boa Viagem no dia seguinte, quando estava um pouco mais calma. A vítima foi recebida por dois agentes. “Eles se comportaram como se fosse algo comum, disseram que não era motivo de fazer boletim de ocorrência”, ela conta. Para os agentes, não havia provas e o pedreiro poderia argumentar que estava apenas trabalhando.
T.C. diz ter ficado em choque e cobrado pelo menos um boletim para ser colocado na portaria do prédio. O agente disse que iria fazer apenas por ela estar pedindo, porque não daria em nada e não havia motivo para o homem ser chamado. “Por isso tantas desgraças acontecem”, disse T.C. aos policiais. Os agentes resolveram chamar o delegado de plantão. “Ele veio, disse ‘isso aí nem...’ e foi embora. Hoje continuo com medo. Não sei o que pode acontecer amanhã ou depois. Foi chocante, você já está chocada e ter que escutar isso tudo. Eu me senti humilhada, indefesa, desprotegida e arrependida de ter ido”.
L.C., 34 anos - Em outubro deste ano, L.C. sofreu quase uma hora de espancamento do marido em seu apartamento em Boa Viagem, Zona Sul do Recife. A agressão só parou porque ela conseguiu fugir até a portaria do prédio. Lá, pediu ao porteiro que acionasse sua família e a polícia.
Quando os policiais chegaram, questionaram se ela tinha certeza que queria que subissem até o apartamento, pois acarretaria na prisão do companheiro. "Daí eles, os policiais, disseram que estavam largando e foram embora", lembra a fisioterapeuta.
Na delegacia, L.C. passava mal e vomitava. "Quando [a delegada] perguntou pelo agressor aos meus pais e soube que os policiais não subiram por eu não permitir, pois essa foi a versão dos policiais para justificar que não entraram, ela começou a dizer que eu não permiti porque fiquei com peninha dele e da mãe dele e se fiz isso era porque iria voltar para ele", lembra a vítima.
"Depois com o escrivão, tive que ouvir de outro agente o seguinte: 'menino, o cabra tava com raiva mesmo, que estrago que ele fez', mas isso com um tom de deboche misturado com a rotina", diz a mulher.
Na delegacia, ela foi informada para ligar dentro de oito dias para saber onde buscar a medida protetiva. "Ser vítima vai além da dor física, dos traumas. A gente tem que lutar e gritar para que todos entendam que isso não pode ficar assim".
O LeiaJa.com procurou a Polícia Civil para conversar com alguma representante do Departamento de Polícia da Mulher. O órgão informou que irá se posicionar através de nota.
Entrevista com Wânia Pasinato, socióloga, representante da ONU Mulheres no Brasil e consultora independente em pesquisas aplicadas sobre Gênero, Violência e Políticas de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres para projetos do governo e de ONGs
LeiaJa.com (LJ) - Por que há tantos casos de mulheres que são destratadas nas delegacias e têm suas denúncias minimizadas?
Wânia Pasinato (WP) - Infelizmente nós ainda precisamos investir mais nesse atendimento, na capacitação dos policiais. Esse primeiro atendimento é fundamental para que a mulher tome coragem de fazer a denúncia, para que se sinta respeitada, e para que o caso tenha o encaminhamento correto na rapidez que é necessária. Precisamos investir em procedimentos novos, protocolos para atendimento.
LJ - Este é um problema nacional ou você acha que é uma situação exclusiva de certas regiões?
WP - Do que eu conheço de Brasil, é um problema nacional. Talvez pudéssemos apontar raríssimas exceções, que são casos pessoais, homens ou mulheres que já tenham uma formação anterior. No quadro geral, é uma falha histórica na constituição das delegacias da mulher. Entendemos que é preciso um serviço especializado para atender mulheres vítimas de violência. A delegacia da mulher não pode ser limitada à existência de uma placa na porta, equipe formada só por mulheres ou predominantemente de mulheres. Tem que ser um local orientado para dar uma resposta adequada às violências cotidianas, física, psicológica, ameaças, para que a gente possa de forma mais concreta não só aplicar a Lei Maria da Penha, mas evitar mortes como a da estudante, que teve um alcance nacional.
LJ - O que é preciso para que a construção de um atendimento mais adequado às mulheres nas delegacias seja feita com maior celeridade?
WP - A Secretaria de Segurança Pública precisa responder pela morte dessas mulheres. O inquérito tem que ser mais ágil. Há uma parcela de culpa do judiciário, que não aprecia as medidas protetivas no tempo previsto da lei, de 48 horas. E quando a medida for aprovada, que seja logo entregue ao autor da violência. Essa é a mensagem do Estado de que está de olho no comportamento dele. Só isso não vai inibir o comportamento criminoso, mas nos ajuda a ter alguma garantia que o Estado está se mobilizando para aplicar a Lei Maria da Penha. Temos que investir na formação dos policiais, dos oficiais de Justiça, dos próprios juízes e ministério público e desenvolver mais protocolos. É preciso que delegacias estejam equipadas. Tudo já está previsto na legislação e nenhum governo deu cumprimento de uma maneira integral. Precisamos que nossos governos cumpram aquilo que já temos nos nossos instrumentos legais. Não é preciso mais lei nem punição mais severa.
LJ - Queria voltar à primeira pergunta. Tudo bem que é preciso investir em capacitação, mas, novamente, por que há tantos casos de mulheres destratadas nas delegacias? O tratamento adequado não deveria ser o básico?
WP - Sim, atendimento digno é óbvio, é o básico, já devíamos ter condição de parar de cobrar isso. Falam que o policial precisa ser sensível para o atendimento. Ele não precisa ser sensível, é um funcionário público, tem que atender com respeito qualquer cidadão. Infelizmente, embora tanto se fale na gravidade da violência contra a mulher, isso ainda é visto como problema de menor importância, é um problema cultural. Ainda temos na nossa sociedade como se isso fosse um problema da mulher, privado, que ela tem que resolver porque provavelmente ela provocou, pelo seu comportamento, pela forma de tratar seu companheiro. Há uma minimização da gravidade da violência e de ver isso como um problema estrutural, que precisa ser resolvido com políticas públicas. Falamos muito mais do que falávamos 11 anos atrás, temos certo alerta quando se trata desses casos, mas ainda há um longo caminho.
LeiaJá também
--> “Remís foi ao encontro da morte”, diz delegado
--> Pedreiro cavou buraco onde enterrou Remís durante 1h30
--> Celular foi motivo da briga que terminou na morte de Remís
--> Jovem desaparecida havia denunciado namorado por agressão