"Ele estava ligando muito para o telefone do salão, eu atendi e pedi que ele parasse de ligar, porque minha patroa ia chamar a minha atenção. Ele desligou e ligou para o meu celular, com o número privado, mas eu disse que sabia que era ele. Erivaldo me disse 'Olhe, você está pensando que eu vou ficar pagando pensão pra você? Morto não recebe pensão, e policial expulso também não paga'. Eu falava que ele precisava cumprir com as obrigações da filha dele, porque não tinha mais nada a ver comigo, e ele me dizia 'Se você não for minha, não vai ser de mais ninguém'".
Esse é um relato de Renata Sérgio da Silva, sobrevivente de uma tentativa de feminicídio, sobre o seu ex-companheiro e também autor do crime. O caso é de 27 de setembro de 2018 e aconteceu enquanto a vítima, que é manicure, estava trabalhando em um salão de beleza no bairro do Parnamirim. O agressor, Erivaldo Gomes dos Santos, um policial militar aposentado, disparou cinco vezes contra a ex-companheira, sendo quatro disparos certeiros e um de raspão.
##RECOMENDA##Os dois têm uma filha, hoje com 15 anos, mas à época, com 10. Erivaldo, que já tinha uma família e casamento quando se envolveu com Renata, a princípio, sequer reconheceu a paternidade da criança, mas posteriormente passou a fazer parte da rotina dela. Até esse hábito foi colocado em xeque quando a tentativa de feminicídio aconteceu: em sessão judicial, ele chegou a pedir um teste de DNA, alegando que a filha sequer era dele e que Renata era uma mulher de vida sexual agitada. O teste foi feito e comprovou o que já havia sido dito na última década.
“Eu não me via mais naquela vida. Queria construir uma família, ter meu marido e meus filhos, e não me via mais com ele, mas ele não me permitia [sair]. Ia na minha casa, ameaçava a minha mãe, minha filha, a mim, então eu me acovardava, ficava com medo e voltava. Tinha medo que ele fizesse algo com a minha mãe ou minha filha. Tentei dar vários pontos finais e ele não deixava. Foram quase 12 anos assim e nossa filha, hoje, tem 15”, acrescentou Renata.
O caso foi a júri popular nesta quinta-feira (15) e chegou a ter sessão iniciada, mas foi adiado nos primeiros instantes. Por questões processuais apeladas pelo Ministério Público de Pernambuco (MPPE), o júri retorna na próxima segunda-feira (19), na 1ª Vara do Tribunal do Júri da Capital, no Fórum Desembargador Rodolfo Aureliano, na Ilha de Joana Bezerra. A assistente de acusação Tatiana da Hora aguarda por, no mínimo, metade da pena máxima para a tentativa, algo em torno de 15 anos.
"Eu quero que ele receba a pena máxima possível para a tentativa, em torno de 50% do máximo, a minha expectativa é que ele pegue, no mínimo, 15 anos. Na audiência do júri, quando ele viu que as teses não iam 'colar', passou a difamá-la. Disse que ela tinha vários parceiros, que a filha não era dele, que ela o enlouquecia”, diz a advogada. A bancada de acusação é composta, além de Tatiana, por Ulisses Dornelas e Martha Guaraná.
"A tentativa dele foi mais do que feminicídio. Tem muitas qualificadoras presentes porque ele impossibilitou a defesa do ofendido; o motivo torpe; ele alegava que 'morto não ganha pensão', que ela [Renata] era uma simples manicure, ameaçava a ela e à família dela. Dizia coisas muito duras. Ele tinha outra família e queria mantê-la de 'back-up'. Se relacionou com ela e ela teve um filho com ele, mas percebeu que nunca teria o que queria. Uma família normal, um casamento. Hoje ela conquistou o que sempre quis ter e ele nunca proporcionou, e que ele tentou tirar dela. Tentou mesmo. No vídeo, ele dá os quatro tiros, volta, dá o quinto tiro, e a chuta para ver se ela morreu”, completa a representante de acusação.
Renata diz que, mesmo com Erivaldo preso, a vida é “um problema”. Além do medo, ela também tem dificuldade para conseguir emprego e teve a imagem manchada pelo acontecimento. “Sou feliz agora, tenho minha família, mas confesso que fiquei com medo [de um novo relacionamento]. Eu vivo em alerta”.
Em alguns lugares onde trabalhou, a manicure é taxada como “a menina da bala”. "Não consigo arrumar emprego. Chego nos salões e já dizem logo: 'É a menina da bala'. Vou trabalhar, mas ninguém me quer. Sempre dão desculpas, dizem que o motivo é outro, que precisam me dispensar, mas eu escuto por fora, os cochichos. Fico sabendo que é por causa disso, mesmo as pessoas sabendo que ele está preso. Aí eu tenho algumas clientes que ficaram comigo depois disso, mas nunca mais consegui um trabalho fixo, só cliente em domicílio. Já consegui trabalho duas vezes, fiquei dois, três meses, mas quando descobrem, me botam pra fora", desabafou.
O dia do crime
A tentativa de feminicídio ocorreu por volta das 15h do dia 27 de setembro de 2018. Como narrado por Renata, o ex-casal teve uma discussão por telefone, segundos antes do crime. No local, estavam, pelo menos, sete pessoas, incluindo a patroa da manicure e uma colega de trabalho, ambas testemunhas em solicitações anteriores. De acordo com a vítima, ele invadiu o salão já perguntando por ela. No momento, ela estava na copa do trabalho e tentou se esconder, mas não conseguiu.
Após uma disputa física, Renata foi alvejada: “Ele conseguiu pegar a arma e atirar em mim. Eu não sentia que estava sendo atingida, pensava que eu estava só discutindo com ele. Só senti quando fui atingida no peito, porque aí eu caí e desmaiei. Acordei com as meninas gritando pelo meu nome. Eu não lembro de nada”.
Em um vídeo, utilizado nos autos, é possível ver o momento em que Erivaldo realiza todos os disparos. Ele chega a cutucar o corpo de Renata com o pé, para verificar se ela ainda está com vida. A vítima diz que precisou se fingir de morta para não ser mais alvejada.
Versão da defesa
A defesa de Erivaldo diz que o réu não teve a intenção de matar a vítima e que, em vez de tentativa de homicídio com a qualificação de tentativa de feminicídio, eles apelarão por uma condenação por lesão corporal do tipo gravíssima, que tem pena máxima de oito anos. O autor do crime já está preso preventivamente há cerca de cinco anos. “Erivaldo deve, sim, ser condenado, mas pelos atos que cometeu. Em momento algum ele quis matá-la e se ele quisesse, teria conseguido, mas houve, claramente, uma desistência”, disse o advogado Eduardo Moraes.