O portão de ferro pintado na cor preta lacrava toda a abertura de luz que poderia sair da casa. Não era possível identificar se naquele aparente corredor estreito viviam pessoas. Após bater várias palmas, foi possível escutar, à distância, os passos que se aproximavam. Até então, a residência de três cômodos localizada no bairro Presidente Vargas, da cidade de Manaus, Estado do Amazonas, parecia inabitável.
Eis que Desir Withenie, uma jovem de 20 anos, aparece. Desconfiada, ela primeiro coloca o olho em um quadrado pequeno para verificar quem era, logo em seguida, abre a porta e com certo receio cumprimenta a todos com um discreto 'Salut' ('Olá' em francês). A mulher jovem de gestos contidos e voz baixa não estava segura ao iniciar a conversa, parecia estar retraída. Mas aos poucos ela sentiu segurança para falar.
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Desir havia saído do Haiti no dia 31 de dezembro de 2011, pela fronteira do país com a República Dominicana, com pouquíssimos pertences. Seguiu ao Panamá, onde tomou um outro voo e chegou na Amazônia peruana. De lá, resolveu ir à Tabatinga (cidade brasileira que faz fronteira com o Peru e se tornou o abrigo de muitos haitianos), tomou mais outro transporte, desta vez um barco, e aportou em Manaus. Com a esperança de conseguir um emprego e enviar dinheiro para a família, Desir deixou filho, mãe e pai para trás.
A história dela se repete entre dezenas de milhares de haitianos que deixam suas famílias em busca de oportunidades incertas aqui no Brasil. Conforme a Pastoral do Imigrante, entidade ligada à Igreja Católica, só no Amazonas existem, atualmente, cerca de quatro mil haitianos.
Entre essa estatística está Philcidr Mercure, um homem com jeito de sorriso e olhar tão cativante que constrangia pela simplicidade de se relacionar. Com um sorriso confiante, diferente de Deisir, não demonstrava insegurança quanto ao futuro que poderia ter no Brasil. Com a carteira de trabalho na mão, mostrava o visto de trabalho de dois anos concedido pelo governo brasileiro, muito embora não tenha conseguido emprego desde que chegou.
Philcidr vive na mesma casa que Desir. Uma residência que se tornou, dentro do bairro, uma espécie de refúgio para os haitianos, assim como outras casas pequenas que, no padrão de vida brasileiro, cabe apenas uma família, mas que excepcionalmente neste caso, tem acolhido 30, 50 e até 80 pessoas.
De acordo com o presidente do bairro, Walter Couto, todos da rua tentam ajudar aos haitianos e se sensibilizam com a situação deles. “Assim que eles chegaram, o padre da Igreja São Geraldo os ajudou e nós conseguimos essa casa para eles viverem”. Com o pouco que conseguem em alguns trabalhos, as 32 pessoas que vivem com Dseir e Philcidr dividem o preço do aluguel de 800 reais e sobrevivem com doações de religiosos. Recebem subsídios alimentares, mantimentos, colchonetes e até gás para cozinhar. Desir mostrava as doações de alimento que havia recebido do padre, que ela chamava de 'Pair' (pai, em francês), enquanto Philcidr saia do quarto para enxugar o rosto de suor e se apresentar "apresentável" à reportagem do LeiaJá.
A situação de ambos é um retrato da difícil realidade que eles vivem ao chegar ao Brasil. Sem falar o idioma e sem ter o apoio governamental, muitos continuam desempregados, com um agravante: em um país totalmente desconhecido. A condição dos imigrantes haitianos no norte do País preocupa entidades de direitos humanos, mesmo com a aprovação dos 1.200 vistos humanitários anuais e a regularização da situação daqueles que já estão por aqui. Ainda falta, segundo a ONG Conectas, acolher aqueles que continuam a chegar sem os vistosquestão que ainda não está muito clara.
Para a diretora da Conectas, Juana Kweitel, o visto humanitário foi uma medida interessante, mas a grande preocupação é com relação às pessoas que ainda estão sendo barradas ou deportadas ao chegarem aqui sem esse documento. “Ao ter esse visto, elas ficam sujeitas a abusos”. Mil haitianos já deixaram o Acre à procura de oportunidade em outros estados. A responsabilidade do Brasil se torna maior, uma vez que comanda a Missão de Paz e Estabilização das Nações Unidas que está no Haiti, desde 2004.
Direitos - O Comitê Nacional de Refugiados (Conare) negou o status de refugiado a esses imigrantes. De acordo com eles, o caso não se trata de um refúgio político, mas, sim, de vulnerabilidade econômica. Assim, o Ministério da Justiça concede apenas um protocolo de ajuda humanitária com validade por 90 dias, e que pode ser renovado, a depender do caso.
Na Constituição Brasileira, esse direito deve ser concedido ao cidadão que, devido à grave e generalizada violação de direitos humanos, é obrigado a deixar seu país e buscar refúgio em outro (diz-se assumir uma postura "signatária"). Na prática, isso não tem sido aplicado e não se sabe precisar melhor em que estágio encontra-se a política migratória brasileira em consonância aos direitos humanos, incluindo a pronta ratificação da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos dos Trabalhadores Migrantes e suas Famílias.
O resultado da falta de esclarecimento dessa política migratória, tanto para quem chega e é barrado na fronteira da Amazônia, quanto para quem possui o visto humanitário como Desir e Philcidr, é que muitos haitianos não conseguem se estabelecer ao chegarem ao Brasil e acabam vivendo em condições precárias, dependentes de ações voluntárias, de entidades ou da Igreja Católica.
A situação se agrava, pois, muitos dos haitianos que chegaram tem medo de receber ajuda, principalmente de alimentos já cozidos. “Eles jogam tudo no lixo, pois pensam que vão ser envenenados”, disse Walter. Em paralelo com o que vivem no Haiti, as pessoas que estão no Brasil vivem em condições de sobreviver melhor, mas não dignas. Estão no Brasil passando privações e sofrendo com a distância da família, e pouco se sabe qual o futuro desses imigrantes aqui no País, ou o que os esperam.
Ao final da conversa, Philcidr parou para sair nas fotos, estendeu a palma da mão e três tonalidades de cores selaram o encontro da equipe do LeiaJá com o entrevistado. Com um sorriso e o polegar positivo deu um 'tchau' com sotaque francês. Tímida, Desir o deixou e foi para outra área da casa. Já na saída, de frente ao portão, ela deu um tchau. A equipe se despediu e era inevitável não pensar na situação de toda aquela gente. A frase de Philcidr não saia da cabeça, afinal, era o sonho de quatro mil haitianos: “eu vim para trabalhar, mas não tem trabalho”.