O retorno à Austrália do número três do Vaticano, o cardeal George Pell, acusado nesta quinta-feira (29) de abuso sexual pela justiça de seu país, provocou uma nova tormenta na Santa Sé, várias vezes acusada de não punir com severidade este tipo de crime.
Há quatro meses, uma vítima irlandesa deixava uma comissão de especialistas contra a pedofilia, denunciando a falta "vergonhosa" de cooperação do Vaticano.
O cardeal George Pell é um dos mais próximos colaboradores do papa Francisco. Sua partida à Austrália, que o cardeal evitava há vários anos, evidencia uma nomeação imprudente do papa que se tornou uma verdadeira bomba de efeito retardado.
Golpe duro
George Pell havia sido de fato acusado em 2002 de abuso sexual por casos muito antigos. No entanto, foi inocentado e chamado a Roma em 2014 por Francisco para dirigir um projeto de reformas econômicas no Vaticano, que poderia ser questionado após estes novos desdobramentos.
"Este é um duro golpe para o papa", considera Iacopo Scaramuzzi, especialista em Vaticano na agência de notícias italiana Aska.
O australiano conservador é, paradoxalmente, uma das vozes críticas ao papa sobre questões sociais. Mas teria desempenhado um papel fundamental no conclave para eleger o argentino Jorge Bergoglio, segundo Scaramuzzi.
"Não acho que este papa não faça nada sobre pedofilia, mas ele não quer se concentrar em casos específicos. Ele quer reviver a Igreja", diz o observador.
Quanto ao caso de Pell, o soberano pontífice decidiu deixar a justiça australiana seguir seu curso, sem exigir uma renúncia. O cardeal será, no entanto, proibido de participar de eventos litúrgicos públicos.
O mandato no Vaticano de Pell está no final e o prelado australiano de 76 anos pode nunca mais voltar a Roma.
Em 2015, o ex-arcebispo de Edimburgo Keith O'Brien renunciou aos seus direitos de cardeal após ter sido alvo de queixas por "atos inapropriados" menos graves.
"Uma eventual condenação criminal do cardeal Pell por abusos sexuais seria sem precedentes", ressalta Francesco Grana, vaticanista do jornal Il Fatto Quotidiano.
Esta semana, o papa Francisco rebaixou ao estado laico Don Mauro Inzoli, um padre italiano condenado por pedofilia e apelidado de "don Mercedes" pela imprensa italiana por seu gosto pelo luxo.
Mas o soberano pontífice precisou enfrentar críticas ao se mostrar em um primeiro momento mais clemente.
Tolerância zero
O papa criou em 2014 a "Comissão pontifícia para a proteção dos menores", a fim de mudar a lei do silêncio da Igreja face aos padres pedófilos e apresentar propostas para a prevenção.
Mas esta iniciativa atraiu críticas no início de março de um de seus membros, a irlandesa Marie Collins, de 70 anos e vítima aos 13 anos de abusos sexuais por um padre.
Ao renunciar, ela queixou-se dos constantes entraves no Vaticano. Desde então, dois membros da poderosa e conservadora Congregação para a Doutrina da Fé teriam sido afastados, segundo Scaramuzzi.
O papa Francisco, que defende uma "tolerância zero", recomendou que os bispos que protegeram pedófilos renunciassem.
Mas a obrigação de denunciar à justiça civil ainda não consta no direito canônico. Fora os casos em que a lei do país se impõe, muitos episcopados não querem nem ouvir falar.
Mas a intensa cobertura midiática de casos de abusos sexuais em muitos países exige maior transparência da Igreja.
O presidente da Conferência Episcopal da França, país manchado por escândalos, ressaltou recentemente que "nada" poderia isentar a Igreja "de ajudar a justiça" na luta contra o abuso sexual.