A comunidade dos portões, na praia de Maria Farinha, no Paulista, vem sofrendo com o desmatamento da área da praia, ocasionado, segundo o grupo Salve Maria Farinha, pelas construções da empresa privada Votorantim na localidade, que prejudicam o meio ambiente e potencializa o avanço do mar nos comércios e residências do local, e potencializadas pela ausência do poder público municipal.
Além disso, um dos principais acessos à praia foi fechado completamente pela própria empresa no dia 31 de agosto de 2020, dias antes da flexibilização dos estabelecimentos, que estavam fechados por conta da pandemia da Covid-19, quando os comerciantes do local se preparavam para o feriado de 7 de setembro e a volta dos clientes. Antes, havia um horário de abertura e fechamento deles.
Desde então, o comércio no local não é o mesmo. A colocação do portão e de tapumes para fechar o acesso da praia impede que moradores, turistas e até comerciantes ambulantes transitem pelo local.
No entanto, o próprio município contradiz o que a lei orgânica diz no seu Art. 17, que garante que o poder público municipal “assegurará o acesso às praias e ao mar”, considerando critérios estabelecidos no decreto federal 5.300/2004. Em parágrafo único, a lei orgânica do município diz que “o acesso que trata o caput deste artigo deverá ter uma largura mínima de 4m (quatro metros), e a distância de um acesso a outro não deverá ser superior a 250m (duzentos e cinquenta metros)”. Ou seja, a distância de um acesso ao outro é, inclusive, superior a um quilômetro de distância. Ou seja, a cidade não cumpre a disposição da própria lei orgânica sobre o plano de gerenciamento costeiro.
Além dos relatos de outros moradores veiculados pelo LeiaJá, Davi Anderson, comerciante e morador do local há oito anos, tem o bar como única e principal fonte de renda. Sem auxílio, Davi lamenta que a renda da família foi totalmente comprometida com o fechamento do acesso.
“Depois que fecharam esse portão ficou muito difícil para trabalhar, e o mar a cada dia avançando. A prefeitura não dá posicionamento nenhum e nem a empresa. A prefeitura só passa, diz que vai cadastrar, pede o nome, CPF, mas não muda nada. Dizem que o cadastro é para revitalizar aqui, mas até agora não chegou nada. O mar está avançando cada dia mais e ninguém faz nada”, disse.
Davi também se queixou da dificuldade de locomoção, principalmente numa eventual emergência de saúde, e relatou já ter passado por isso. “A gente aqui tem uma grande dificuldade de se locomover. O único acesso é aqui [aponta para a entrada/saída da praia], e se a maré tiver cheia a gente só consegue sair daqui por cima, mas se ela tiver muito forte, não dá pra sair. É muito difícil. A minha senhora que morava aqui comigo quando tava doente da perna precisou ser socorrida, mas a gente teve que socorrer ela só no outro dia porque não dava para passar”, relatou o morador.
Veja os relatos:
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O único acesso da área da comunidade dos portões da praia de Marinha Farinha é dificultoso. Os degraus são desregulares e cheios de dificuldades. O acesso da entrada é o mesmo da saída, que fica quase impossível de transitar quando a maré está cheia. A reportagem, que não tem mobilidade reduzida, teve dificuldade para acessar o local.
Para se ter noção do risco do avanço da maré, alguns bares e casas do local tentam proteger a evolução do mar reforçando a proteção feita pela própria natureza com as ondas do mar, com cimento, para que o processo erosivo não se agrave com a força da água.
Foto: João Velozo/LeiaJáImagens
O ativista ambiental e idealizador do Salve Maria Farinha Fernando Macêdo, contou ter dado o pontapé inicial do projeto na tentativa de expor a gravidade do que está acontecendo no local “e para fazer com que as pessoas entendessem, porque a gente percebia que as pessoas normatizam o terrível, e o discurso era aproximar as pessoas do problema”.
“E, nesse processo, a gente conseguiu fazer o mapeamento de todo o litoral e engajar as pessoas em algumas lutas. Hoje a gente vê o fruto desse advocacy, que já é a limpeza da praia que não tinha. Começou a funcionar depois das denúncias, de a gente mostrar o quão isso é prejudicial para o ambiente marinho e até para a estética do ambiente”, disse.
Segundo Fernando, a falta de acesso à praia não é uma questão específica apenas dos moradores ou comerciantes e turistas. É, inclusive, dos funcionários da limpeza urbana que sofrem com a falta de acesso para executar o trabalho. Um dos pontos que o idealizador do Salve Marinha Farinha destacou por diversas vezes, assim como os moradores e comerciantes do local, é que não há diálogo com a prefeitura e nem com a empresa privada, e que há uma “clara intenção” de desmatar a área.
O ativista do Salve Maria Farinha criticou a ausência da prefeitura da cidade com apoio aos moradores, que vem desde muitos anos. "Você precisar socorrer uma pessoa e não ter por onde sair deve ser pavoroso. São muitas questões que a gente tem aqui nessa parte dos portões, desde a falta de assistência do poder municipal que manteve essa ocupação aqui por 40 anos sem se preocupar com vias de acesso, infraestrutura, saneamento básico. Deixou as pessoas a própria sorte para elas se virarem como podem. A gente vê uma omissão do poder público com essas famílias aqui, que pagam luz todas elas, pagam taxa de bombeiro nos locais que são estabelecimentos comerciais, e sem nenhum tipo de amparo. São os filhos negados da cidade", lamentou.
“Essa falta de diálogo e transparência no processo torna essa construção nada sustentável. Eles se apropriam do discurso da sustentabilidade, mas é um processo que não tem transparência, não tem inclusão da sociedade local que vai ser impactada. Não é sustentável”, garantiu. “Já vai fazer dois anos que a gente conseguiu paralisar a obra (com denúncias), mas nesse tempo eles bloquearam os acessos”,complementou.
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Não foram só as pessoas do local que foram prejudicadas. “Além dos comerciantes fixos aqui da praia que sofrem com a falta de acesso, todos os outros comerciantes que trabalhavam e tinham público para atender aqui na praia foram afetados. Só de ambulantes a gente tinha aqui uma leva enorme, vendedor de pipa, bronzeador, artesanato, queijo, cachorro-quente, pastel, churros, ostra, camarão, vendedor de caranguejos. E os próprios pescadores daqui que vendiam os pescados para os donos dos bares, que tinha movimentação e consumo, também foram interferidos nesse processo”, apontou Fernando.
De acordo com o ativista, a empresa Votorantim já conversou com o prefeito de Paulista, Yves Ribeiro. “Eles [a empresa] não querem conversar, eles querem pagar. Os coqueiros da praia já vêm sofrendo depredação de anos, um a um vem sendo derrubado de forma discreta porque os coqueiros aqui da praia são protegidos por lei orgânica da cidade, são coqueiros centenários que compõem a paisagem de Maria Farinha. Esses coqueiros estão no meio do projeto deles [da Votorantim] e um a um vem sendo derrubado e para manter a discrição, eles retiram o material lenhoso no mesmo dia depois da poda. O mesmo ocorre no interior do terreno, na parte da instalação da fábrica”.
“E agora decidiram utilizar o terreno lançando um empreendimento imobiliário para mais de 140 mil pessoas, que a gente já anuncia o desastre que vai ser para o meio ambiente, uma vez que o terreno está numa área de restinga, manguezal, mata atlântica, dunas, apicum. Rodeado de áreas de preservação, que seria o Parque Municipal de Acaraú, no manguezal, a APA estuarina do Rio Timbó e a floresta urbana da mata de jaguarana, e o terreno está no meio. Se a gente for considerar uma área de amortização desses parques naturais da cidade, esse projeto não sairia do papel por estar no meio dessas áreas de conservação”, explicou Macêdo.
Em nota enviada ao LeiaJá, a empresa Votorantim informou que o terreno encontra-se em processo de loteamento para construção de um empreendimento imobiliário que será “socioambientalmente sustentável”. No documento, a empresa garante que serão abertos quatro acessos públicos. “O projeto já está protocolado junto à Prefeitura de Paulista e encontra-se em processo de tramitação. Além da entrega de quatro acessos públicos, contempla ainda a destinação de áreas privadas para usos públicos, como praças, áreas verdes, sistema viário e estacionamento público, além de promover desenvolvimento, geração de emprego e de renda e o fomento ao turismo no município”.
A Votorantim também explicou que o fechamento do acesso foi feito em conformidade com a legislação e no exercício do direito de propriedade.”Foi realizado [o fechamento] de forma gradual após comunicações oficiais e diálogo com órgãos públicos, mantendo o acesso de pedestres pela propriedade privada por 6 meses, entre setembro/2021 e março/2022. Neste período foi permitido que as barracas que funcionam na praia, próximas ao terreno, pudessem se adaptar, inclusive com a sinalização para que a população retomasse a utilização dos acessos públicos da praia, todos estes preservados, havendo, inclusive, acesso público e irrestrito a menos de 70 metros do limite da propriedade da empresa", disse.
A reportagem do LeiaJá entrou em contato com a Prefeitura do Paulista, mas não teve retorno até a publicação desta matéria.
Nota da Votorantim na íntegra
“A Votorantim informa que o terreno de propriedade da empresa no município de Paulista-PE encontra-se em processo de loteamento para construção de um empreendimento imobiliário que será socioambientalmente sustentável. O projeto já está protocolado junto à Prefeitura de Paulista e encontra-se em processo de tramitação. Além da entrega de quatro acessos públicos, contempla ainda a destinação de áreas privadas para usos públicos, como praças, áreas verdes, sistema viário e estacionamento público, além de promover desenvolvimento, geração de emprego e de renda e o fomento ao turismo no município. Neste contexto, o fechamento do acesso foi realizado em conformidade com a legislação e o no exercício do seu direito de propriedade, realizado de forma gradual após comunicações oficiais e diálogo com órgãos públicos, mantendo o acesso de pedestres pela propriedade privada por 6 meses, entre setembro/2021 e março/2022. Neste período foi permitido que as barracas que funcionam na praia, próximas ao terreno, pudessem se adaptar, inclusive com a sinalização para que a população retomasse a utilização dos acessos públicos da praia, todos estes preservados, havendo, inclusive, acesso público e irrestrito a menos de 70 metros do limite da propriedade da empresa".