Estamos em 2005, em uma Chácara em Campina Grande, na Paraíba. Suando em bicas, o jovem Wandeberg está há quase duas horas numa sala cheia de missionários evangélicos. Já levou socos no estômago, pontapés e rasteiras. Chacoalharam-lhe a cabeça e esfregaram-na no chão. Ao ouvido, gritam-lhe: "O sangue de cristo tem poder".
"Muitas igrejas evangélicas consideram a homossexualidade uma forma de possessão demoníaca. No desespero de me tornar ‘santo’, me submeti às chamadas Campanhas de Libertação, que são organizadas com o intuito de promover ‘curas’ diversas", lembra Wandeberg Lima, que, por seis anos, viajou de Norte a Sul do país buscando reorientação sexual através de sua religião. Hoje, é o pastor da Comunidade Cristã Nova Esperança (CCNE), uma Igreja fundada para receber pessoas LGBT.
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"No início, me lembro que acreditava que alguma coisa ia mudar, mas com o passar do tempo, a sensação ao fim das Campanhas de Libertação era de frustração. Eu sentia uma profunda dor, dor na alma, por não conseguir chegar no meu objetivo de deixar de ser gay, na plenitude que eu não conseguia viver", comenta.
Sete orações, sete cânticos da harpa cristã e sete capítulos da Bíblia eram a receita doméstica para a "cura", uma extensão das extenuantes sessões de exorcismo. Diante do insucesso do "tratamento", Wademberg começou a viajar para outros estados do Brasil, em busca de pastores cada vez mais conhecidos por oferecer o serviço de expulsão de demônios. "Com o passar dos anos, eu comecei a questionar os missionários o porquê de não estar dando certo. A resposta era sempre: ‘você não está conseguindo porque não quer’. Mas se eu estava investindo tanto naquilo, por qu eu não queria? Comecei a me questionar se Deus existia mesmo, por que como ele poderia não me atender?", conta.
De acordo com o psicólogo Hugo Felipe Lima (CRP-02/15.365), colaborador do Conselho Regional de Psicologia de Pernambuco - 2ª Região (CRP-02) e integrante da Comissão Temática de Gênero e Sexualidade do CRP-02, a impossibilidade de reverter a orientação sexual de uma pessoa é um consenso científico. “A psicologia como um todo entende a homossexualidade como uma das formas de vivenciar a sexualidade humana. A heterossexualidade não é um padrão de desejo da raça humana”, explica.
Recentemente, o Conselho publicou uma nota de repúdio à decisão do juiz Waldemar Cláudio de Carvalho "que libera psicólogas/os para tratar homossexualidade como doença, e apoio à Resolução CFP nº 001/99 do Conselho Federal de Psicologia, que estabelece normas de atuação para profissionais da psicologia em relação à orientação sexual". Hugo Lima completa: "A psicologia brasileira não vai repetir as violências praticadas contra a população LGBT. O Conselho deve garantir a diversidade da existência humana, para que as pessoas possam estar no mundo de maneira segura. Para isso, é necessário empoderar os indivíduos e dar ferramentas para que vivam sua orientação sexual com plenitude".
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As dúvidas e sucessivas frustrações de Wandemberg, somadas à exclusão das atividades na igreja tradicional, logo converteram-se em tentativas de suicídio. "Pensei em me matar várias vezes nesse período, em cortar os pulsos. Tomei doze comprimidos de uma só vez antes de dormir, com o objetivo de não acordar, porque não conseguia me libertar daquilo que me afastava de Deus”, desabafa. Foi quando a Comunidade Cristã Nova Esperança cruzou seu caminho. “Ouvi falar que havia uma igreja cristã que aceitava pessoas como eu. Sentia falta das dinâmicas, das orações, das obras, da religião como um todo. Fui a Natal, no Rio Grande do Norte, procurar ajuda da pastora Rejane (Neves), que me disse que Jesus me aceitava como eu era”, recorda.
Empolgado com o que viu em Natal, ele participou da mobilização para trazer a CCNE a Pernambuco. "Começamos uma célula de discussões na Imbiribeira. O grupo foi crescendo e sentimos a necessidade de abrir um templo físico, que se deu no bairro do Cordeiro, em 2010. Três anos depois, me ordenaram pastor", comemora.
Atualmente, além dos templos do Recife e de Natal, a CNNE também está presente nas cidades de Fortaleza-CE, Macau-RN, São Paulo-SP, Cotia-SP, Osasco-SP, Guarulhos-SP, Santo André-SP, Jandira-SP, Franco da Rocha-SP, Limeira-SP, Vitória-ES, Porto Alegre-RS, Pelotas-RS, com um total de 17 Igrejas.
“Um lugar de recomeço”
Segundo o presbítero Letônio, a Igreja não faz nenhum tipo de restrição de vestimenta. (Foto: Marília Parente/LeiaJáImagens)
Cadeiras de plástico, cozinha logo atrás do salão principal e terraço de cimento batido. A CCNE passa longe do luxo e do alto poder aquisitivo das grandes igrejas evangélicas. “Pois é, gente, chegou a hora do dízimo. Aquela hora que tem gente que vira pra mim e diz: ‘o pastor só vive viajando, está rica’. Mas a gente não conta com a ajuda de ninguém e precisa das doações pra manter a Igreja de pé”, um dos fiéis pede o dízimo em tom bem-humorado.
De bermuda, barba e brinco na orelha, o presbítero Letônio Martins explica que cada um ajuda como pode. “Não temos patrocínio e a gente faz o que pode para financiar a manutenção e pagar o aluguel do templo”, coloca. Segundo Letônio, todos os membros da igreja, inclusive o pastor Wandemberg, têm outros empregos, não havendo ninguém que seja financiado por ela ou concentre muito poder dentro da instituição.
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De certa forma, a dinâmica desburocratizada permite que o templo seja bastante liberal. Não há, por exemplo, restrição de roupa. “As pessoas são o que são. Quem sou eu para determinar isso? A gente não precisa impor o que elas vão vestir no culto, nem podemos afastar alguém de Deus por causa de uma vestimenta”, acrescenta Letônio.
Com cultos abertos ao público nas quintas, sábados e domingos, a CCNE inclui na rotina dos fiéis debates de mulheres, onde são aceitas travestis e transexuais, e teologia inclusiva, partindo de uma abordagem histórico-crítica do que a Bíblia fala sobre homossexualidade. "A Bíblia não nos condena. Muito citam Levítico 18:22, que diz ‘com homem não te deitarás como se fosse mulher, abominação é’. Sobre a utilização da palavra abominação, é importante esclarecer que até os anos 50, encontramos termos como 'impureza' nesse trecho. Logo no versículo 19, encontramos que os homens não podem se relacionar sexualmente com mulheres no período menstrual, porque ambos vão estar contaminados pela prática. Contaminação vem de impureza. Se um homem se relacionar com uma mulher menstruada, então, estaria tão condenado quando um homem que se relaciona com outro homem", argumenta o pastor Wandeberg.
Para ele, muito da intolerância de algumas instituições cristãs aos homossexuais decorre da má compreensão do texto bíblico. “As pessoas querem levar as coisas ao pé da letra, sem considerar aspectos histórico-críticos. Então nosso propósito é acolher homossexuais, intersexuais e transexuais e promover o bem estar delas”, conclui.
Lésbica e egressa de igrejas tradicionais, Andreza encontrou aceitação dos "irmãos" da CCNE. (Foto: Marília Parente/LeiaJáImagens)
Com o lema de “um lugar de recomeço”, no dia da visita de nossa reportagem, a Igreja celebrava a vida de sua levita*, Andreza Terci. Em meio ao bolo do aniversário de 38 anos e aos novos amigos, Andreza lembra da época em que acreditava correr risco de morte. “Sempre fui lésbica e muito ligada à religião evangélica, mas a profecia dada a mim na igreja tradicional era uma só: se eu não me ‘curasse’, Deus tiraria algo de mim. Minha vida ou a de minha esposa”, relata.
Assim como o Pastor Wandeberg, Andreza participou, inutilmente, de uma série de Campanhas de Libertação. “Eu já estava disposta a morrer e ser condenada pela minha sexualidade quando, no ápice da minha perturbação, minha esposa comentou comigo que tinha conhecido um lugar que me agradaria. Cheguei à CCNE e me meti logo nas atividades. Me identifiquei muito e fui bem acolhida neste lugar”, comemora.
Comunidade Cristã Nova Esperança (CCNE) //Serviço
Endereço: Avenida Caxangá, 124, Madalena, Recife-PE
Funcionamento: Quintas, sábados e domingos
Horário: A depender.
*Pessoa responsável por entoar cantos de louvor.