Nos últimos dias, um grupo de turistas brasileiros encontra-se vivendo um verdadeiro pesadelo em meio à pandemia global do novo coronavírus. Ao tentarem retornar de suas viagens a Cabo Verde para o Brasil em voos já marcados, descobriram - em pleno aeroporto - que estes haviam sido cancelados pela companhia aérea Cabo Verde Airlines, numa decisão que classificam como motivada por interesses econômicos arbitrários.
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Na imagem, painel do Aeroporto Internacional Amílcar Cabral, na Ilha do Sal, confirma que outras companhias aéreas mantiveram seus voos para fora do país. Foto:cortesia
Segundo as cerca de 80 pessoas de Pernambuco, Amapá, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e outros estados brasileiros, a justificativa inicial dada pela Cabo Verde Airlines foi de que a ação da empresa atendia às decisões do governo local para contenção da pandemia do Covid-19 no país. Porém, a informação foi logo questionada pelos turistas brasileiros que observavam o movimento de passageiros que continuavam a voar para o exterior por outras companhias.
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"Nós vimos que havia determinação do governo, mas ela proibia a entrada e não a saída de estrangeiros do país. Chegamos a nos animar ao ver algumas filas formadas para realização de check-in, mas eram de passageiros da TAP (empresa aérea portuguesa), que estava realizando seus voos normalmente", relatou a pernambucana Lígia Dantas. Ela ainda informou que a Cabo Verde Airlines não forneceu qualquer suporte aos brasileiros - como estadia, transporte ou alimentação - e se limitou a indicar que procurassem o consulado do Brasil para a resolução da situação causada pelos cancelamentos. A companhia também teria negado o acesso dos turistas a um telefone local para a comunicação com o Cônsul Honorário do Brasil na Ilha do Sal.
JUSTIFICATIVA DA EMPRESA CONTRARIA MEDIDAS QUE DIZ CUMPRIR
Em resposta à reportagem, por e-mail, a Cabo Verde Airlines afirma ter conhecimento da situação do grupo de brasileiros, lamenta a situação dessas pessoas e confirma que se viu forçada a cancelar seus voos a partir do dia 18 de março. Segundo a empresa, no dia 17, o primeiro-ministro de Cabo Verde, Ulisses Correia e Silva, anunciou novas medidas do Governo para impedir o alastramento do surto de Covid-19 no país. "Na sequência do anúncio do Governo, a Cabo Verde Airlines não teve outra opção se não suspender, com efeitos a partir de 18 de março de 2020, todas as suas operações para todos os países em que operava até então, nos quais se inclui o Brasil", confirma Raúl Andrade - VP para Sales & Marketing da Cabo Verde Airlines.
No e-mail, para comprovar o cumprimento das medidas estatais, a companhia aérea cita literalmente o anúncio feito por Correia e Silva. Porém omite o trecho seguinte, em que o chefe nacional define justamente as exceções à interdição aérea: "Excetuam-se da interdição, os voos cargueiros e os voos de regresso de cidadãos em férias ou em serviço em Cabo Verde aos seus países de origem ou de residência."
IMAGEM: Pronunciamento do Primeiro Ministro de Cabo Verde explicita justamente as exceções que a companhia aérea se negou a cumprir - Foto:Reprodução
IMAGEM: Cabo Verde Airlines cita o Primeiro Ministro em sua resposta, mas omite as exceções determinadas pelo governo e violadas pela empresa Foto: Reprodução
Anteriormente, uma nota publicada no site da Cabo Verde Airlines já justificava os cancelamentos pelas ações de contenção da pandemia do novo coronavírus determinadas pelo Governo de Cabo Verde.
A reportagem pesquisou nos meios oficiais estatais do país e teve acesso a arquivos com as últimas decisões do governo publicadas no Boletim Oficial até a tarde desta quinta-feira (19/03). Em ambas as fontes, encontrou o anúncio de novas medidas para a contenção do novo coronavírus que tratam da proibição de eventos e aglomerações em locais públicos, fechamento de estabelecimentos noturnos, medidas para o abastecimento do arquipélago, punição para crimes econômicos e avisos que coíbem a realização de estoques pela população. Na única comunicação governamental que trata de interdição das linhas aéreas, datada da manhã do dia 17, o Primeiro-Ministro cabo-verdiano, José Ulisses Correia e Silva, deixa explícito que excetuam-se da interdição de três semanas "os voos de regresso de cidadãos em férias ou em serviço em Cabo Verde aos seus países de origem ou de residência."
Em contato com a embaixada do país em Brasília, a reportagem obteve confirmação de que não há decreto ou outra decisão governamental que determine ou autorize o cancelamento de voos para o regresso de estrangeiros ao exterior. Seguindo orientações, encaminhamos outras questões por e-mail. Perguntas como se o Governo de Cabo Verde tem conhecimento do caso dos brasileiros; se a companhia aérea estaria cometendo alguma infração legal; e qual seria a posição do governo frente ao caso e à assistência aos turistas afetados pelos cancelamentos de voos, não foram respondidas até o fechamento do texto.
"O CONSULADO NÃO DÁ RESPOSTAS CONCRETAS"
É o que afirma Luiz Veiga Neto, um dos brasileiros afetados pela decisão da Cabo Verde Airlines. O empresário e piloto de avião viajava de férias com a família e esperavam retornar para Macapá em um voo da companhia marcado para esta quinta-feira. Eles estão hospedados em um dos poucos hotéis que ainda permanecem abertos na quarentena que foi instalada na cidade de Santa Maria. A iniciativa se deu exclusivamente pela atitude do próprio grupo, que conseguiu negociar um pacote de descontos com o hotel.
"Tem gente que está com o dinheiro contado e não vai ter condições de arcar com os custos por mais dias", revela o amapaense. "Além disso, a embaixada não nos dá uma posição fixa, não diz qual atitude vai tomar. Passamos muito tempo sem notícias e, quando temos, apenas informam que tentaram resolver com a companhia mas não conseguiram." Luiz é um dos turistas responsáveis pelas negociações com a Cabo Verde Airlines e os órgãos de diplomacia brasileiros no país. Sua descrição dos contatos revela um verdadeiro imbróglio de competências entre a empresa, o consulado e o Governo de Cabo Verde.
O grupo está em contato com o cônsul honorário do Brasil na Ilha do Sal, o vice-cônsul do Brasil em Cabo Verde e o atendimento de emergência da Embaixada brasileira. De acordo com o grupo de brasileiros, nenhum dos órgãos tem assumido apoio prático à estadia dos turistas no país estrangeiro e limitam-se a dizer que estão em contato com a companhia aérea. A Cabo Verde Airlines, mesmo violando as exceções às interdições aéreas para regresso de estrangeiros aos seus países de origem, mantém-se intransigente no atendimento aos seus passageiros e exigem que estes “corram atrás” de uma interferência do Governo para solucionar o problema dos voos que a empresa cancelou deliberadamente.
"Enquanto isso, a companhia diz que a Embaixada é que tem que solicitar ao governo cabo-verdiano que interceda junto a ela para que haja um voo de retorno. A sensação é de que ninguém está fazendo nada para resolver nossa situação." De acordo com o piloto de Macapá, a empresa ainda teria se recusado a fornecer uma declaração por escrito justificando a causa dos cancelamentos, direito que o passageiro teria de acordo com a legislação internacional de aviação civil.
SOB INCERTEZAS E EXPOSIÇÃO AO RISCO DE CONTAMINAÇÃO
Idosos e pessoas com problemas de saúde que as enquadram nos grupos que correm o maior risco de mortalidade pelo novo coronavírus compõem boa parte do grupo de brasileiros impedidos de viajar pelos cancelamentos irregulares da Cabo Verde Airlines. "Há crianças, gente que precisa voltar para cuidar dos filhos e até um adolescente viajando desacompanhado", informa Lígia. "Como aqui é uma ilha, as pessoas estão com medo de desabastecimento. Ontem houve muita correria aos mercados, muita gente está estocando água e alimentos enlatados."
As descrições das condições levantam dúvidas a respeito da segurança do grupo em relação à exposição ao Covid-19. As idas frequentes, e por longos períodos, ao aeroporto para tratar dos problemas com a companhia aérea aumentam as chances de contato dos brasileiros com o vírus. Além disso, precisam recorrer aos poucos restaurantes que permanecem abertos em Santa Maria para se alimentar. Os turistas que ainda estão na cidade são apenas aqueles que não conseguem deixá-la.
Por: Renato Feitosa