O futebol feminino grita em coro em cantos diferentes do planeta contra assédio moral e abusos sexuais. Nas duas últimas semanas, atletas de diferentes nacionalidades quebraram o silêncio em denúncias com o sentimento de 'basta' contra treinadores e dirigentes que passaram do ponto e não deram alternativas para algumas dessas jogadoras a não ser se submeter a situações constrangedoras para fazer o que mais gostam: jogar futebol. O grito não foi orquestrado. O movimento nasceu espontaneamente. Denúncias partiram de um dos principais países do mundo, os Estados Unidos, onde atletas como Megan Rapinoe levantam bandeiras há anos e se tornam porta-vozes de grupos contra uma série de comportamentos inadequados, para dizer o mínimo, envolvendo dirigentes e treinadores.
A Federação Americana de Futebol anunciou recentemente a contratação de Sally Yates "para conduzir uma investigação independente sobre as alegações de comportamento abusivo e má-conduta sexual no futebol profissional feminino." O primeiro passo foi dado. Sally foi procuradora geral interina por pouco tempo no governo Donald Trump. Quatro homens do futebol dos EUA são acusados de cometer abusos contra meninas em seus respectivos clubes.
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Richie Burke, ex-gerente do Washington Spirit, foi acusado de lançar uma "torrente de ameaças, críticas e insultos pessoais" contra jogadoras, de acordo com reportagem do jornal americano Washington Post. Christy Holly, técnico do Racing Louisville, foi demitido em agosto após acusações de conduta indevida. Farid Benstiti, ex-técnico do OL Reign, de Seattle, também foi forçado a sair do time após uma série de comentários abusivos. Semana passada, o site The Athletic, após demorada investigação, publicou reportagem em que jogadoras atuais e do passado acusaram Paul Riley, gerente do North Carolina Courage, de abusar emocionalmente delas e "coagi-las a fazerem sexo". Ele negou, mas foi demitido. O futebol feminino dos EUA é basicamente comandado por homens.
A onda de reclamações e pedidos de respeito também partiu de jogadores de futebol da Venezuela, onde a seleção masculina de Tite jogou nesta quinta-feira pelas Eliminatórias da Copa do Catar. Vinte e quatro atletas, incluindo Deyna Castellanos, uma das melhores do país, acusaram o ex-técnico da seleção de base, o panamenho Kenneth Zseremeta, de abuso sexual. A notícia caiu como uma bomba no futebol local. "No ano passado, uma das nossas companheiras de equipe nos confessou que tinha sido abusada sexualmente desde os 14 anos pelo treinador", disse Castellanos, jogadora do Atlético de Madrid, da Espanha, que preferiu não revelar a identidade da colega em questão.
"Como resultado dessa confissão, diversas companheiras expressaram experiências de assédio, tanto por telefone quanto por perguntas e convites inadequados, subornos para mantê-las dentro da seleção, presentes fora do contexto, massagens e diferentes situações que definitivamente não eram normais e que não entendíamos", acrescentou a atacante, a melhor do mundo em 2017 eleita pela Fifa. O treinador comandou diferentes seleções de base femininas entre 2008 e 2017. Com ele, a seleção da Venezuela conquistou duas vezes o Campeonato Sul-Americano Sub-17 e se classificou três vezes para a Copa do Mundo da categoria.
Em seus relatos, as jogadoras denunciaram intimidações para que continuassem a jogar. Nas categorias de base, ficar fora da equipe ou ser cortada significa abrir mão do sonho. "Decidimos quebrar o silêncio para evitar que as situações de abuso e assédio, físico, psicológico e sexual provocadas por Zseremeta, façam mais vítimas no futebol feminino e no mundo", completou a jogadora. O caso será investigado. Ecos do pedido de ajuda já chegaram à Fifa.
Os mesmos pedidos de socorro foram ouvidos na Austrália. Neste caso, a Federação de Futebol do país já se comprometeu a abrir investigação após as denúncias de assédio sexual contra as atletas do time nacional. Quem resolveu abrir o jogo foi a atacante Lisa De Vanna, que parou de atuar no mês passado. Ela fez 150 jogos pela seleção. Demorou, mas ela relatou que já foi submetida a 'comportamentos inadequados'. De Vanna confessou ter passado por isso no começo de sua carreira, quando era uma menina atrás de um sonho. "Se eu fui assediada sexualmente? Sim. Intimidada? Sim. Se eu vi coisas que me deixaram desconfortável? Sim", disse a ex-jogadora de 36 anos ao jornal Sidney's Daily Telegraph. "Em qualquer organização esportiva e em qualquer ambiente, o assédio sexual infantil, o comportamento predatório e a conduta não profissional me deixam doente", disse.
Em seu relato, ela contou sobre o que chamou de 'propostas obscenas' por parte de membros da comissão técnica dos times e da seleção. Disse que os procedimentos ainda acontecem na Austrália. "É hora de falar." As denúncias são agora de conhecimento dos dirigentes de futebol feminino na Austrália.
De Vanna não foi a única a reclamar, mesmo que tardiamente, dos procedimentos. Outra ex-jogadora, Rhali Dobson, também contou ter sido vítima de assédio sexual na juventude. A Federação espera que elas formalizem suas queixas para que o caso possa ser investigado. O futebol é apenas mais uma modalidade cujas jogadoras estão se rebelando. Há outros esportes que já denunciaram tais abusos, como a ginástica.
Simone Biles
Recentemente a atleta americana Simone Biles disse em juízo sobre os assédios que sofreu na seleção dos EUA. Hóquei e natação na Austrália são outras modalidades a passar pelos mesmos problemas.
Na Venezuela, as jogadoras não têm dúvidas de que as situações denunciadas eram compartilhadas por membros homens da comissão técnica e diretiva. Para quem não está acostumado com essas insinuações, vale destacar que comentários sobre atrativos físicos revelam assédio, assim como aquelas "brincadeirinhas" com insinuações sexuais.
As mulheres do futebol, e de qualquer segmento da sociedade, estão dando um basta nisso. Não querem mais sofrer esse tipo de pressão ou se verem reféns de comentários nada a ver. No caso das acusações contra o técnico panamenho Kenneth Zseremeta, de 55 anos, uma investigação já está em marcha conforme anunciada pelo procurador-geral Tarek Saab em sua conta no Twitter. Os relatos que chegaram ao procurador venezuelano dão conta de uma situação orquestrada por parte do treinador, inclusive envolvendo os pais da jogadora cujo nome não foi revelado. Havia muita manipulação, aparentemente com o único propósito de continuar contando com a atleta no time. Agora se sabe que não era somente por isso.
Recentemente, as jogadoras de futebol da seleção brasileira se manifestaram contra o caso de assédio moral e sexual envolvendo ninguém menos do que o presidente da CBF, Rogério Caboclo, para quem todas elas teoricamente trabalham. Liderado por Marta, seis vezes a melhor jogadora do mundo, o time se manifestou publicamente contra qualquer tipo de conduta envolvendo a situação. "Foi uma decisão em conjunto, a gente tem uma comissão que é muito alinhada com as atletas, liderada por Pia Sundhage, então a gente resolveu mostrar a nossa opinião nesse sentido. Somos obviamente contra qualquer tipo de assédio. Sem fazer pré-julgamentos, os fatos estão aí para serem apurados, mas a gente necessitava mostrar nossa posição", disse Marta antes da condenação de 21 meses de afastamento do dirigente.
O manifesto foi assinado por todas as jogadoras da seleção e divulgado em suas redes sociais. Ele dizia o seguinte: "Todos os dias no Brasil, milhares de pessoas são acometidas e desrespeitadas com cenas de assédio, seja moral ou sexual. Especialmente nós, mulheres. São brasileiras e brasileiros, vítimas de abusos e atos que vão contra os nossos princípios de igualdade e construção de um mundo mais justo. Dizer não ao abuso são mais do que palavras, são atitudes. Encorajamos que mulheres e homens denunciem. Nossa luta pelo respeito e igualdade vai além dos gramados. Hoje mais uma vez dizemos: não ao assédio."