"Todo mundo deve tirar seu cartão da pátria, porque isso nos permitirá saber quem está se beneficiando de qual projeto, quem não é beneficiado, e desmascarar alguns salafrários." Nicolás Maduro descrevia assim em 2017 o documento com tecnologia capaz de cruzar, em menos de 30 segundos, as informações do titular: de exames de sangue à retirada de comida, gastos com gasolina e hábitos na internet. A ferramenta importada da China permite ao chavismo monitorar dois terços dos 30 milhões de venezuelanos.
Quem desenvolveu o novo sistema usado no cartão da pátria foi a gigante chinesa ZTE, em uma parceria que se estendeu para outras áreas. A empresa tem um largo histórico de controvérsias - sofreu sanções e proibições nos EUA por supostamente usar programas e softwares para espionar americanos e empresas americanas. A ZTE é a menina dos olhos do governo chinês, que cada vez mais está exportando seus programas de inteligência artificial.
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Em 2015, a China lançou seu plano "Made in China 2025", para dominar as indústrias tecnológicas de ponta. Isso foi seguido, no ano passado, pelos planos para o país ser líder mundial no campo da inteligência artificial até 2030 e construir uma indústria de US $ 150 bilhões.
O mundo em desenvolvimento é uma grande oportunidade para concretizar tais ambições. A China não quer apenas dominar esses mercados. Ela quer usar os países em desenvolvimento como um laboratório para melhorar as próprias tecnologias de vigilância. Só no ano passado, a China exportou mais de US$ 5 bilhões em tecnologia de inteligência artificial (IA).
A China não faz distinção entre clientes. Nos últimos dois anos, exportou para países democráticos, como Alemanha, França e Argentina. Mas seus clientes mais assíduos têm sido regimes com diferentes graus de viés autoritário: Venezuela, Rússia, Azerbaijão, Armênia, Irã, Turquia, Paquistão, Ruanda e Quênia.
Em geral, regimes com traços autoritários que desejam manter um rígido controle social sobre a população e sobre seus opositores. "É uma via de duas mãos: ao mesmo tempo em que exportam tecnologia, os chineses usam esses países como cobaias para os próprios experimentos", afirma Steven Feldstein, professor de políticas públicas da Universidade Boise.
Quando os governos que adotam os softwares fiscalizam manifestações e reuniões de opositores, dão acesso a empresas chinesas a um banco de dados cada vez maior.
A Venezuela é o exemplo mais bem acabado do projeto chinês. Além da tecnologia para o cartão da pátria, os venezuelanos aceitaram em um pacote de empréstimo chinês uma tecnologia de reconhecimento facial desenvolvida pela empresa CloudWalk Technology, uma startup com sede em Guangzhou. A tecnologia de última geração de reconhecimento facial é capaz de identificar em poucos segundos qualquer cidadão filmado por uma câmera em lugar público.
No caso venezuelano, as tecnologias permitem ao chavismo estender sua capacidade de vigilância dos cidadãos a níveis alarmantes. No ano passado, o governo prometeu um bônus financeiro a quem comparecesse nos centros de votação na eleição presidencial. Para receber o bônus, o eleitor precisaria registrar que votou, em uma máquina instalada fora de alguns centros eleitorais.
Ao conceder um subsídio para o cidadão que vote em uma eleição, desde que ele registre seu voto com o cartão da pátria, o chavismo sabe quem votou em determinado distrito eleitoral, mas principalmente quem não votou ou não registrou seu voto com o cartão.
"Trata-se de um controle sofisticado e extremamente perigoso. Com o cartão da pátria é possível cruzar todos os dados do usuário e mapear seus hábitos, seus costumes, suas necessidades", disse ao Estado Anthony Daquin, que já foi o principal assessor de segurança da informação do Ministério da Justiça da Venezuela, mas deixou o país em 2009.
Ele participou da primeira comitiva venezuelana a visitar a China para conhecer os programas de IA desenvolvidos no país. "Foi depois daquela visita que o chavismo soube que poderia ter total controle social sobre a população. O cartão da pátria com chip tem apenas este objetivo", disse. Desde o lançamento pelo presidente venezuelano, esta espécie de RG paralelo já foi adotado por 20 milhões de venezuelanos para obter subsídios do governo.
Benito Urrea, um diabético de 76 anos, disse à Reuters, no fim do ano passado, que um médico do Estado recentemente negou a ele uma prescrição de insulina e o chamou de "radical de direita" porque ele não se inscreveu para votar. Como alguns outros cidadãos venezuelanos, especialmente aqueles que se opõem ao governo de Maduro, Urrea vê o cartão com suspeita. "Foi uma tentativa de me controlar através das minhas necessidades", disse. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.