O bullying, o ato de cometer abusos psicológicos e/ou físicos de forma sistemática, é comum no ambiente escolar e não raro dificulta o bom convívio de crianças e adolescentes na escola, seus estudos e a visão que elas têm de si mesmas, podendo causar danos persistentes na vida das vítimas.
Conseguir quebrar o ciclo de violência e superar os traumas que ficaram depois de uma experiência dolorosa é tão importante quanto complicado e, muitas vezes, a mudança de escola é uma opção encontrada por estudantes e suas famílias para resolver o problema. No entanto, a simples mudança de ambiente e de companhias nem sempre basta para que a criança ou adolescente volte a se sentir bem na escola e consigo mesmo, sendo necessário continuar acompanhando de perto o processo de adaptação do estudante que sofreu bullying para ajudar a vítima a se fortalecer novamente.
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O LeiaJá ouviu uma psicóloga estudantil, uma aluna que já foi vítima de bullying e uma mãe que já precisou auxiliar o filho que sofreu violência em sua primeira creche, para entender como se dá esse processo de superação e adaptação a um novo ambiente, além de compreender como é possível ajudar estudantes que passaram por problemas semelhantes.
“Minha mãe foi me ajudando a trabalhar a situação”
A estudante Maria Vitória Bernardo vive em Espírito Santo do Pinhal, município localizado no interior do Estado de São Paulo e sofreu bullying quando era criança, em sua primeira escola. A situação já fazia com que a mãe de Maria Vitória fosse frequentemente à escola pedir que fossem tomadas providências sem que, no entanto, nada mudasse. O ponto máximo de tensão ocorreu quando as provocações e abusos psicológicos se transformaram em agressão física.
“Eu estava sentada na hora do intervalo com meus dois amigos e eu estava comendo um salgado e na época eu não gostava muito de tomate, era um salgado de pizza, tirei o tomate e coloquei ele em cima de um guardanapo, só que acabou voando e caiu na perna de uma menina. Na hora eu pedi desculpas e, na hora que eu abaixei para pegar o tomate no chão, senti um tapa nas minhas costas, começou a arder na mesma hora, a menina era mais velha, eu sempre fui pequena e ela era bem maior. Sentei e comecei a chorar, fui atrás de uma inspetora mas ela disse que se a menina me bateu foi porque eu dei motivo. Minha perna tremia, minhas costas ardiam, eu estava até branca porque eu não tinha feito nada, apanhei de uma menina e quando fui pedir ajuda colocaram a culpa em mim, eu não conseguia compreender”, contou ela.
Nos dias que se seguiram, Maria Vitória e sua mãe tiveram vários problemas com a escola, com a inspetora, a diretora e com a aluna que praticou a agressão, pois mesmo decidida a mudar a filha de escola, a mãe de Maria não conseguiu vaga para ela em nenhuma outra instituição pois o ano letivo estava perto do final. Assim, mesmo em meio a muitos conflitos entre a direção da escola e sua mãe, Maria Vitória precisou continuar onde estava até o ano acabar. Ela conta que depois de uma conversa entre as duas meninas, suas respectivas mães, a inspetora e a diretora da escola, não houve mais nenhum episódio violento até que o ano terminasse.
A mudança de instituição, no entanto, foi algo que afetou muito a saúde emocional de Maria Vitória, que na época tinha, entre oito e nove anos de idade e nunca tinha estudado em outra escola antes. Para ela, foi “um turbilhão de sentimentos” pois seus amigos continuavam na antiga escola e apesar de ser acolhida e bem tratada por professores e alunos na nova instituição de ensino, de acordo com ela, “todos já tinham suas panelinhas, rodinhas, então foi difícil”, explicou a estudante.
“No começo foi horrível, fiquei umas duas semanas chorando sempre que chegava em casa, me sentia insegura com medo de acontecer a mesma coisa. Minha mãe sempre conversou comigo, sempre foi muito clara e sincera em relação à situação, me incentivou a estudar e fazer novas amizades, sempre me ouvia desabafar e me aconselhava”, contou Maria Vitória, que também destaca que o apoio de sua mãe, da equipe da escola e dos alunos foi essencial.
Hoje, olhando para o que passou, a estudante que atualmente está cursando o segundo ano do Ensino Médio avalia que a mudança foi positiva e ajudou sua vida a ser melhor, trazendo aprendizado. O problema que enfrentou na primeira escola, de acordo com Maria Vitória, “deixou marcas, foi ruim na época, mas hoje eu levo numa boa”.
“Passamos a confiar mais no que ele comunica”
Letícia Magalhães* é pesquisadora e professora, vivendo atualmente em Bilbao, na Espanha, onde faz doutorado. Antes de se mudar, ela decidiu tirar seu filho, então com três anos de idade, da creche em que ele estudava ao perceber mudanças em seu comportamento ao mesmo tempo em que a equipe da escola nunca explicava o que estava acontecendo de errado.
O filho de Letícia tem Síndrome de Down e ainda não consegue falar, comunicando-se por meio de gestos e sons. Somente depois de tirá-lo da creche ela soube o motivo de o menino “gritar, espernear, se agarrar à gente e se comportar como se estivesse sendo levado para uma tortura” sempre que ia para a creche: o garoto estava sofrendo bullying por parte dos colegas e também de alguns professores.
“Soubemos de algumas coisas que aconteciam, de baterem nele ou o deixarem sozinho chorando do lado de fora, e ‘brincadeiras’ violentas como os alunos grandes sentarem na cabeça dele”, contou a mãe. O problema fez com que o menino tivesse medo de outras crianças e, para Letícia, o maior desafio ao buscar outro lugar para que seu filho estudasse era achar um lugar “onde ele fosse visto como uma pessoa normal e onde os princípios pedagógicos não incluam entender a violência como uma coisa natural nas crianças”, explicou ela.
Já depois da mudança para a Espanha, Letícia encontrou uma instituição que atendia a seus critérios e conta que desde então seu filho deixou de sentir medo dos colegas. Apesar do apoio encontrado na nova escola, a mãe explica que a readaptação ainda está acontecendo mesmo depois de dois anos que a criança sofreu violência. “A escola, colegas e as famílias dos colegas têm sido importantes nesse processo. Ele vai superando, mas creio que algumas coisas ficarão gravadas”, explicou Letícia.
Em casa, a forma encontrada de ajudar o filho a se readaptar ao ambiente escolar após o bullying foi, de acordo com ela, foi prestar mais atenção aos sinais que ele dava e confiar no que o menino expressa. “Ele fala pouco mas se faz entender e passamos a confiar mais no que ele comunica, se ele está desconfortável, triste, é porque algo aconteceu. Tem dias que ele não quer ir para a escola, e fomos percebendo quando é um motivo pelo qual realmente não deve ir como sentir alguma dor, ou quando é só vontade de ficar em casa, então é preciso realmente conhecer o filho”, contou a mãe.
Ela também explica que quando percebe que o menino não quer ir para a escola, relembra as coisas boas que tem lá e, diante de uma nova negativa, busca entender o que houve. “Estamos bastante presentes na escola e juntamos os pais e mães com alguma frequência, esse contato ajuda a construir amizade entre as crianças e superar comportamentos danosos”, explica Letícia, que também conta que, para ela, é muito importante entender que ter muito medo da escola é um sinal de alerta e que “se alguma vez ele fizer como fazia na escola antiga, de gritar, espernear, se agarrar à gente, se comportar como se estivesse sendo levado para a tortura, não é normal. Me diziam que todas as crianças fazem isso. Não é verdade, meu filho fazia isso quando ia a um lugar onde era maltratado”, reforçou ela.
Ajuda profissional
Raquel Lacerda é psicóloga educacional e explica que é muito importante acompanhar e verificar sempre como a criança ou adolescente se comporta, caso não relate o que está havendo, para poder detectar a ocorrência do bullying. Ela explica que mesmo quando a vítima não conta, em geral se mostra tensa, preocupada com aspectos que podem ser alvos do bullying, tentar mudar esses aspectos, apresentar isolamento ou um comportamento mais deprimido são indícios de que alguma coisa está errada.
“Às vezes, por exemplo, uma adolescente se tranca no quarto dizendo que vai dormir e na verdade usa a auto flagelação como uma tentativa de escape. Qualquer mudança de comportamento significativa como estar mais calado, mais triste, chorar escondido e responder que não é nada, todos são sinais de que é necessário buscar ajuda profissional”, explica Raquel.
O papel da escola, nesse caso, é acompanhar tudo para estar atenta aos limites entre brincadeira e violência. Raquel explica que a equipe de psicologia precisa estar em contato frequente com os professores e, em caso de algo passar do limite, a intervenção deve ser feita com a vítima, com o agressor e também com o restante da turma. “É preciso chamar as famílias, analisar se a vítima se coloca nessa posição e se o estudante sofre bullying na família, são muitas questões. O trabalho preventivo e a intervenção têm que ser constantes e a família tem que procurar um psicólogo”, pontuou ela.
Para decidir se é melhor ou não trocar de escola, não há uma resposta única. “Depende da relação e das providências tomadas. Os pais têm que estar junto, acompanhando, buscar um processo psicoterapêutico para que a vítima possa de fortalecer, mas se houver negligência da escola, não adianta insistir em permanecer”, explica a psicóloga.
Após a mudança de escola, muitas vezes mudar de ambiente, se afastar dos agressores e conhecer pessoas novas parece algo positivo e, segundo Raquel, de fato é, mas muitas vezes não é suficiente pois é comum que a vítima sinta muito medo de que, mesmo na escola nova, o antigo problema se repita. Segundo Raquel, a formação da identidade da criança é prejudicada por assimilar as “causas” do bullying como características de fato suas, comprometendo a auto-estima em outras relações, causando medo de sair de casa, fechamento para outras relações devido à falta de aceitação, passando a assumir o lugar de vítima, o que é um processo sofrido e doloroso.
No que diz respeito ao agressor, a psicóloga explica que é possível que seja uma criança ou jovem que também sofre com insegurança, inveja e outras questões que precisam de cuidados. Raquel frisa a importância de não banalizar tudo como bullying, mas também não desconsiderar o sofrimento, apurar o olhar para o que acontece com os estudantes e garantir que o suporte necessário esteja presente tanto por parte da escola quanto com a família, além de garantir o apoio de um profissional.
*Nome fictício
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