"Dançava como menino, mas não me sentia confortável", diz a transexual Ely. Foto: Chico Peixoto/LeiaJáImagens
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Entre uma mordida e outra na rapadura, um suspiro. Maquiagem devidamente retocada, cabelos bem produzidos e fixados com laquê e últimos ajustes no figurino. Os próximos quinze minutos da vida de Ely Amaral são os mais importantes do ano. Ela, apaixonada pelo São João desde a infância, espera todos os anos por esse momento. O que para muitos é uma época gostosa de vivenciar, para Ely é muito mais. Vai além do amor pelo festejo junino, é resistência diária, a cada ensaio duradouro e apresentação. A cabeleireira transexual, 36, conquistou o seu espaço na Quadrilha Junina Tradição e hoje pode dançar como dama, da forma que sempre desejou.
É semana pré-junina no Sítio da Trindade, em Casa Amarela, Zona Norte da capital, e o 34º Concurso de Quadrilhas Juninas Adultas conheceu seus vencedores. São grupos compostos por dezenas de participantes distribuídos em duplas, na configuração de pares heterossexuais. Ele vestido de cavalheiro e ela de dama. As coreografias representam costumes e histórias da cultura sertanejas, na maioria das vezes ligadas a ideia de ruralidade. Apesar do imaginário normativo e envolto no conservadorismo que o São João e consequentemente as quadrilhas estão inseridos, na Região Metropolitana do Recife as competições e concursos são diversos e cada vez mais longe dos preconceitos.
Travestis, transexuais e homossexuais quebraram barreiras históricas e atualmente também fazem parte das principais quadrilhas estilizadas de Pernambuco. Ocupam papéis importantes e de destaque nos grupos juninos e são considerados participantes legítimos nos concursos de quadrilha na capital pernambucana. Ely Amaral se descobriu como transexual aos 15 anos e não teve grandes problemas com a família. “Minha família sempre me aceitou”, diz. Quando criança, ela conta que costumava dançar de cavalheiro, mas que não se via vestida naquelas roupas. Queria mesmo era ir para o arrasta-pé com vestidos armados e cabelos longos.
Bastidores de minutos antes da apresentação no Sítio da Trindade. Foto: Chico Peixoto/LeiaJáImagens
“Após alguns anos, eu comecei a dançar como mulher em grupos de quadrilha mais pequenos de bairro. Em 2012, entrei na Quadrilha Tradição e sou feliz nela até hoje. Eu acho que existem dois momentos que todo mundo se liberta, no Carnaval e no São João, a aceitação é maior”, explica Ely. A cabeleireira que mora no bairro de Dois Unidos, também na Zona Norte da capital, diz que o festejo junino é seu único momento de diversão e que não sofreu muito preconceito das quadrilhas.
“O Brasil vive uma onda conservadora e tudo está difícil. Mas, nos concursos de quadrilha do Recife, as travestis e transexuais já são aceitas. Lutamos por isso. Muitas vezes, por falta de oportunidade da sociedade, elas acabam se prostituindo e por isso que acho essa oportunidade maravilhosa”, complementa a dançarina. O amor pelo São João, pela dança e pela quadrilha é maior do que os impedimentos para Ely. O figurino sai do orçamento, o transporte é feito de ônibus na ida e na volta e o desafio é diário. “Mas a gente ama tanto essa diversão que esquece todos os problemas”, comenta.
A visibilidade homossexual e travesti durante as festas juninas de Pernambuco é pública, porque, em geral, eles se destacam em diversas esferas da produção das festas juninas, seja na coreografia, maquiagem, costura, organização e confecção dos figurinos. Por isso, a demanda por dançarinos LGBTs também é alta. São espaços que se tornaram “amigáveis” e onde popularmente é aceita a presença desses sujeitos.
Isa mostra o figurino antes de se apresentar pela Tradição. Foto: Chico Peixoto/LeiaJáImagens
A documentarista Isa Santos, 29, também dama da Quadrilha Junina Tradição, vive no bairro dos Coelhos, na área Central do Recife, e se preparou por sete meses com os colegas em Casa Amarela, bairro onde a quadrilha está instalada. Aos 15 anos, revelou para os familiares que era homossexual e aos 17 começou a se travestir. O amor pela quadrilha superou preconceitos e desafios impostos pelo patriarcado que no início participavam da formação dos concursos.
“Em 2004, quando a Tradição começou a inserir travestis, só participavam quatro. Desde então evoluímos muito e a abertura tem melhorado. É uma massa muito grande. Geralmente, 90% da quadrilha é feita pelo público LGBT. Tanto os homens gays que dançam como cavalheiros, como as mulheres, que metade são travestis. É só olhar ao redor e perceber que esse é um espaço ocupado por nós, também”, diz Isa, há 24 ano inserida no universo das quadrilhas.
Não há limites para LGBTs nas quadrilhas, porém as travestis procuram os grupos mais glamourosos e famosos. No interior do Estado, isso ainda é um grande desafio. “Mas, a gente espera que isso seja revisto ao longo dos anos, sabemos que é uma vitória diária sermos aceitas longe das ruas. Travesti não só serve para ser prostituta”, declara Isa.
Quadrilha junina provoca debate lúdico sobre casamento homoafetivo. Foto: Líbia Fiorentino/LeiaJáImagens/Arquivo
Com enredo bem elaborado, superproduções e lutando por um São João sem preconceitos, a Quadrilha Junina Tradição fez história no ano de 2013. Durante a apresentação, o grupo encenou o primeiro casamento homoafetivo. Na época, a relação amorosa entre dois homens foi bem aceita pela diretoria, dançarinos e a plateia do Festival de Quadrilhas Juninas da Globo Nordeste, no Cabo de Santo Agostinho, na Região Metropolitana.
De acordo com Tádzio Estevan, diretor de comunicação da quadrilha, a partir de 2013 o grupo procurou tratar temas sociais. "Decidimos encarar esse projeto do beijo gay para trabalhar os conflitos da homofobia. Por que não levar isso para dentro de uma quadrilha se isso serviria de elemento multiplicador para onde ela fosse se apresentar? O protagonista era um noivo que provava vários beijos das meninas, mas se descobria no beijo do rapaz. Fizemos várias apresentações e assumimos o risco porque nesses espaços o público é diverso. Para nossa surpresa, a reação da plateia foi ótima. A gente sabe que os LGBTs também estão na arquibancada, não só dentro das quadrilhas”, relembra.
Teco escolheu a Lumiar porque a quadrilha é referência. Foto: Chico Peixoto/LeiaJáImagens
Elvis Roberto, conhecido pelos amigos como Teco, se divide entre o trabalho como recreador e os ensaios na Quadrilha Lumiar, do bairro do Pina, e uma das primeiras agremiações a se apresentarem em concursos cidade afora. Ele, que é homossexual e dança como uma dama, estava nervoso antes da apresentação na última quarta-feira (13), no Sítio da Trindade.
Teco iniciou nas quadrilhas dançando como cavalheiro, mas depois que experimentou dançar como dama, se sentiu melhor. “Eu não aceitava essa diversidade na minha adolescência, embora tivesse o desejo. Mas, hoje sou muito tranquilo e levo isso também para a quadrilha. Adoro me arrumar, cuidar do cabelo, colocar a roupa brilhosa e arrasar na dança”, pontua. Ele também iniciou os ensaios em outubro de 2017 e para chegar ao Recife percorre vários quilômetros de ônibus desde Gaibu, Cabo de Santo Agostinho. “É o amor pela quadrilha”.
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