O comerciante Luiz Ananias Gonçalves só consegue equiparar o frenesi causado pela suposta aparição de Nossa Senhora do Carmo, em pleno Centro do Recife, ao do traumático boato do estouro da barragem de Tapacurá, em 1975, que assombrou a população pela possibilidade de reedição de uma das enchentes mais violentas do Estado: a cheia do Rio Capibaribe, que ocorrera poucos dias antes. A diferença é que o curioso caso da Santa teve como cenário uma inofensiva terça-feira de sol, dia 30 de julho de 2002, de movimento regular para o comércio aos olhos de Ananias, que se estabeleceu com seu quiosque de cocos na Avenida Dantas Barreto em 1968. Metade do comércio já havia parado quando o boato chegou à sua barraca: a imagem da Virgem teria se projetado espontaneamente nos vidros de uma das janelas da Basílica de Nossa Senhora do Carmo.
Curioso, Ananias correu até a fachada da edificação. “Que eu vi, eu vi. Aquele detalhe feito um contorno de Nossa Senhora, uma imagem que deixou o povo confuso, como um sonho. Mas não era a santa.”, afirma. Embora tenha considerado a imagem que viu “idêntica”, em suas palavras, à da santa, o comerciante não acredita que tenha presenciado uma aparição. “Sou evangélico, respeito toda religião, mas acho que as coisas não são assim. É como o camarada jogar um copo d’água, espalhar e dizer: ‘olha é um cachorro!’. Mas o povo acreditou e teve fé”, completa.
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Pessoas em oração diante da Basílica, outras em contemplação ou até ganhando dinheiro com o suposto milagre de Nossa Senhora do Carmo. Nem bem a notícia de que Nossa Senhora se manifestara em pleno Centro do Recife se espalhou, o cenário descrito pelo chaveiro Rogério Santos, um dos mais antigos da área, já era de comoção generalizada. “Eu enxergava o que todo mundo no momento também via: a imagem de Nossa Senhora. Muitas pessoas chegaram até a lucrar, vendendo fotos do vidro. Tiveram outras que colocavam a cadeira, faziam o sinal da cruz e ficavam em oração”, descreve.
Chaveiro afirma que, até hoje, consegue ver contorno da Santa. (Chico Peixoto/LeiaJá Imagens)
O chaveiro, contudo, teoriza que a projeção não passava de um desgaste ocasionado no vidro pela luz solar. “Como se o material da janela tivesse sido marcado por uma foto ou adesivo colocada do lado de dentro. Já fiz algumas chaves para a Igreja, mas até hoje tenho curiosidade de ver se tem algo por detrás”, brinca. Rogério garante que vê o contorno da Santa até hoje. “É na janela da altura da bandeira branca. Se você olhar bem, ainda dá pra ver o contorno”, comenta. Apesar da descrença na aparição, ele reconhece que, durante alguns dias, o vertiginoso aumento do fluxo de pessoas do pátio foi positivo para seu negócio. “Fiquei mais conhecido, sou protegido por essa Santa. O roubo aqui é grande, mas já cheguei a passar um dia fora com a barraca toda aberta e ninguém triscar em nada. É aquela coisa: cada um faz o que gosta e vê o que quer”, conclui.
"Acho que alguns nem viam e diziam que sim", opina Eriberto. (Chico Peixoto/LeiaJá Imagens)
Outro autônomo antigo na praça, Eriberto Rodrigues tem sua versão da história. “Lembro só que o comentário foi grande, teve até romaria se formando, mas nunca cheguei a ver nada. Acho que alguns nem viam e diziam que sim, talvez na imaginação da fé. Muita gente falando a mesma coisa”, coloca.
Do lado de dentro
Atualmente residindo na Igreja de Nossa Senhora da Piedade, em Jaboatão dos Guararapes, o frei Tito Figueiroa era um dos frades que habitavam o convento da Basílica quando a população, do lado de fora, passou a clamar pela atenção dos religiosos ao fato. “Vi do segundo andar uma agitação enorme das pessoas, cobrando dos frades que dessem acolhida a essa tal visão e aos tais visionários. Entramos em contato com a Arquidiocese e a recomendação foi a de que não incentivássemos tal manifestação e que não se admitisse a ‘aparição’ como fato público e notório”, conta.
Frei Tito, na Igreja de Piedade, onde reside atualmente. (Chico Peixoto/LeiaJá Imagens)
De acordo com o carmelita, esta é, aliás, a conduta padrão da Igreja em casos do tipo. “A instituição nunca acolheu, sem mais nem menos, qualquer história de aparição, nem em eventos célebres como Lourdes, na França, ou Fátima, em Portugal”, acrescenta. O Frei Tito não interpreta o acontecimento da Basílica do Carmo como uma aparição da Virgem. “Quando acontece, vem de Deus e a tendência é a de esconder e não sair falando sobre a visão. O fato vai sendo revelado com a continuidade e com as poucas pessoas mais ligadas ao visionário ou ao grupo de visionários, como no caso dos pastorinhos de Fátima”, descreve. O religioso enfatiza que a Igreja possui uma metodologia em evento suspeitos. “Ela lança mão dos recursos e tecnologia existentes. Da psicologia, psiquiatria, história e teologia, que ensina que é possível haver comunicação especial com Deus, mas isso precisa ficar comprovado cientificamente”, destaca.
Na época, os representantes da Igreja Católica em Pernambuco confirmaram a posição de não considerar uma aparição a suposta imagem da janela. Há quem diga que os contornos se formaram através de um efeito químico oriundo de um produto de limpeza.