Em tempos de pandemia, o número de crianças e adolescentes usando dispositivos eletrônicos como smartphones, tablets e notebooks aumentou consideravelmente, bem como a quantidade de tempo dispensado pelos pequenos a esses utilitários. Segundo levantamento realizado pela empresa Opinion Box, em outubro de 2020, só no Brasil o número de crianças, na faixa etária dos cinco aos oito anos, que utilizam o celular por cerca de três horas ao dia, aumentou de 30% para 43% em um ano.
A corrida para as telas, como forma de amenizar os impactos do isolamento social - e alternativa para manter as atividades escolares de forma remota -, pode, a princípio, parecer um risco para outra ferramenta de extrema importância no desenvolvimento infantil: a literatura; no entanto, o cenário que se descortinou diante a crise sanitária de proporções mundiais botou por terra o estigma de que a tecnologia pode ser mais vilã do que ‘mocinha’ para o universo dos livros.
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De acordo com pesquisa feita pelo Instituto Pró-Livro em mais de 200 cidades brasileiras, houve crescimento de leitores na faixa dos cinco aos oito anos, durante a quarentena: de 67% para 71%. Para a escritora de livros infantis Clara Haddad, a união da tecnologia com a literatura pode ser um aliado poderoso no estímulo à leitura dos pequenos. “Acredito muito que uma coisa não substitui a outra. Sempre houve essa ideia: ‘chegou o CD, vai acabar o LP’, aquela ideia de ‘é o fim do mundo’; acho que uma coisa não invalida a outra. São formas de leitura diferentes, mas que se complementam”, disse em entrevista exclusiva ao LeiaJá.
A escritora, com quase 30 anos de experiência na literatura infantil - sendo 23 deles dedicados exclusivamente à narração oral; ofício que, em 2020, lhe rendeu o Troféu Baobá - considerado o Oscar brasileiro da narração e mediação de leitura -, diz que se surpreendeu positivamente com o ‘casamento’ da tecnologia com a literatura e que, desde o último ano, tem se dedicado bastante às atividades remotas. “Eu me vi numa situação em que eu realmente tive que abraçar o online porque seria a única maneira que eu tinha de estar com meus leitores. Eu tinha algum receio porque quando a gente fala em literatura a gente pensa no contato com o público, o olho no olho, a partilha das emoções, tudo muito presencial, e de repente fazendo esse vínculo com o online eu fiquei surpreendida porque as crianças embarcam na mesma (maneira) e às vezes até interagem mais”.
No mês em que a literatura e, sobretudo a literatura infantil, é celebrada em todo o mundo - sendo 2 de abril o Dia Internacional do Livro; 18 do mesmo mês, Dia Nacional do Livro Infantil e; 23 de abril,o Dia Mundial do Livro -, Clara festeja a sua profissão e frisa a importância do hábito de ler para a criançada. “A literatura infantil chega a todos, quando é uma boa escrita, porque os temas são transversais, falam de emoções, falam de pessoas como nós, e acredito que a literatura para a infância pode chegar a todas as idades porque a gente tem sempre esse olhar de encantamento e curiosidade. Acho que isso os adultos não poderiam perder”.
As escritoras Lenice Gomes (esq.) e Clara Haddad se dedicam à literatura infantil. Foto: Arquivo Pessoal
Habitat da infância
Compartilhando opinião semelhante, a escritora infantil Lenice Gomes, arrisca ir um pouco além. Para ela, “a literatura habita a infância e a infância habita a literatura”. A autora pernambucana tem mais de 40 livros infantis publicados e foi finalista do prêmio Jabuti, em 2004. Ela passou a dedicar-se à literatura para a infância após muitos anos atuando como professora e encontra nas parlendas, trava-línguas e adivinhas o material bruto para suas histórias.
Para Lenice, os livros são um universo de conhecimento e desbravamento do mundo e o segredo para despertar o interesse dos pequenos é deixá-los à vontade para escolherem seus caminhos no mundo das letras. “É preciso, antes de tudo deixá-los livres para ler e contar a versão deles das histórias. A confiança no maravilhoso é um excelente caminho. Sempre digo que a literatura enquanto arte da palavra abre-se para uma pluralidade de leituras e eu persisto nesse caminho a literatura que abraça o sonho e a fantasia com o mesmo entusiasmo que se aproxima da vida real”, disse em entrevista ao LeiaJá..
Monteiro Lobato
No Brasil, o dia 18 de abril foi o escolhido para celebrar o Livro Infantil. A escolha se deu como forma de homenagear o escritor Monteiro Lobato, dono de clássicos como Reinações de Narizinho e O Saci, que lhe renderam o título de ‘pai’ da literatura infantil brasileira. No entanto, o reinado de Lobato, no entanto, como baluarte da literatura nacional vem sendo duramente questionado e, até mesmo, ameaçado.
Com livros escritos em meados do século 20, nas quais questões raciais e de gênero tinham outro contexto e conotações, o escritor tem sido apontado como vilão, sobretudo entre pais e educadores. Alguns defendem a retirada de certos títulos do autor das prateleiras infantis, já outros, acreditam que deva ser feita uma reestruturação dessas obras com a retirada de termos e trechos.
Foto: Wikimedia Commons
Para a escritora Clara Haddad, que diz ter crescido lendo e “relendo” os livros de Lobato, o bom senso é o que deve falar mais alto frente a questões como essas. Ela enxerga na literatura uma ferramenta de conscientização e construção social, sendo assim, o bom uso dos livros, até mesmo os considerados polêmicos, pode ser de extremo ganho na formação das crianças. “Não concordo com as coisas racistas e misóginas mas ao mesmo tempo eu acho que não podemos simplesmente cancelar um autor porque, querendo ou não, ele tem um percurso e um valor para a literatura brasileira.Se a gentenao trata esses temas e não conversa com as crianças ela sobre essas situações todas, elas não se protegem para o mundo. A literatura é um espelho do que acontece na vida, é uma forma de preparar a criança sobre esses temas num ambiente seguro a partir da voz daquelas pessoas que ela confia”.
Já Lenice, comenta sempre ter lido o autor para seus alunos e relembra algumas reações. “Muitas vezes eles próprios questionavam os aspectos racistas e preconceituosos que apareciam nas histórias. Isso mostra como os leitores também problematizam os temas e revela que a mediação cuidadosa pode ser melhor do que uma radicalização como retirar os livros da escola”.
Para a autora pernambucana, Lobato tem sua importância por ter promovido a "formação da literatura brasileira” e menciona outra escritora importante, Clarice Lispector - que menciona o escritor no conto Felicidade Clandestina -, para ilustrar sua fala. “Para ela, esse contato com o livro foi uma abertura para o encantamento, isso revela que em qualquer tempo os leitores terão a sensibilidade para experimentar os mais diversos temas e as diferentes perspectivas sobre os textos”
‘Isso dá história’
Clara Haddad levou sua literatura para a internet por conta da pandemia. Foto: Divulgação
Para celebrar um mês repleto de datas alusivas aos livros e à literatura infantil, a escritora Clara Haddad lança a edição brasileira do título O que é que o crocodilo come ao meio-dia, já lançado em Portugal, país onde reside há 17 anos. Nele, Clara mistura um tradicional conto africano a uma inusitada notícia lida no jornal, em uma história repleta de referências familiares e ludicidade. “Tudo pode ser matéria e material para um escritor escrever. Seja uma notícia, uma música, uma experiência de vida, a gente trabalha com essa matéria humana. O escritor vai fabular e brincar com elas. O escritor tem essa possibilidade de brincar e recriar de forma amena, sem perder as questões da vida, porque é importante falar delas, mas fazendo de uma forma talvez mais suave”.