Por Eduarda Esteves e Marília Parente
Violência física, sexual ou doméstica, abandono da família, preconceito e sobrevivência econômica. Situações de hostilidade como essas perpassam o ambiente da prostituição em que estão inseridas as travestis no Brasil. Para muitas profissionais, no trabalho com o sexo, além da questão financeira, elas buscam amor, atenção e o acolhimento que faltou em casa ao assumir sua travestilidade.
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Aos 40 anos, a pernambucana Cláudia Morena passou boa parte da vida trabalhando com o seu corpo. Ela relembra que se descobriu travesti aos 12 anos e por conta da não aceitação da família e falta de dinheiro, entrou na prostituição por achar que era o único caminho possível. “Durante muitos anos me prostitui nas avenidas, nas BRs. Já levei carreira, fui jogada em um açude, apanhei, e também tomei tiro. Um cliente fez de tudo comigo e no fim mandou nem olhar para trás e disse que iria atirar. Eu não acreditei e dei as costas para ele. Alguns segundos depois comecei a andar, ele sacou a arma e disparou. A minha sorte foi que eu, maloqueira de rio e criada nas comunidades, fiz um zigue-zague e pulei dentro dos matos. Não fui atingida e fiquei por horas escondida com medo dele me achar”, relembra Cláudia, ainda com calafrios ao pensar sobre o fatídico dia.
Em 2002, ela descobriu que era soropositiva, estava infectada com o vírus HIV, após ser socorrida e internada. “Eu não me protegia e não tinha muito conhecimento sobre proteção”. Cláudia foi encaminhada para o Hospital Otávio de Freitas, no Recife, e o diagnóstico era pneumonia. “Tinha juntado um trocado bom com a prostituição e ia construir a minha casa. Mas a doença me pegou de jeito e tive que me tratar com o dinheiro”, disse. De acordo com a estudiosa Lidiana Diniz, na pesquisa “Silenciosas e silenciadas: descortinando as violências contra a mulher no cotidiano da prostituição”, a prostituição para as mulheres oriundas de camadas sociais mais baixas não é algo transitório e temporário. Se torna uma alternativa em busca da sobrevivência.
Na profissão, ela diz ter ganho dinheiro, mas também muita desgosto pela vida, vícios no álcool e nas drogas e o ódio dos homens com quem se relacionava. Foto: Chico Peixoto/LeiaJáImagens
“Eu pensava que eu ia morrer e estou viva há 16 anos e não sinto quase nada. Pensei muito em sair da prostituição porque muitos clientes não querem usar camisinha e eu não queria prejudicar ninguém e também me proteger. Estava vulnerável”, diz.
Cláudia conta que a vida deu uma guinada quando conheceu o Grupo de Trabalhos em Prevenção Posithivo (GTP+), organização não governamental que auxilia pessoas vivendo com o vírus HIV e doentes de Aids em Pernambuco. “Eu era muito humilhada na rua, todo mundo me chamava de frango. Foi quando me deram um cartão do GTP e eu aprendi meu nome social, eu sou Cláudia. Também ganhei uma profissão, sou auxiliar de cozinha e de recepcionista, além de fazer faxinas para me manter”, pontua a ex-garota de programa.
Na profissão, ela diz ter ganho dinheiro, mas também muita desgosto pela vida, vícios no álcool e nas drogas e o ódio dos homens com quem se relacionava. Apanhou, apanhou, foi roubada, enganada e só teve novamente esperança em viver quando encontrou o homem de sua vida. “Eu o achei em um barzinho. Eu estava do outro lado da rua e o avistei. Ele tinha um porte e os cabelos lisos. Era lindo. Pensei logo, achei o amor da minha vida. E foi dito e feito. Ele me viu e achou que eu era mulher mesmo, de cara. Eu gostava de beber também e a gente se dava muito bem. Fomos morar juntos, ele me aceitou como travesti e também portadora do HIV. Mas, foi uma luta porque a mãe dele não aceitava ele namorar um homem que virou mulher e nos expulsou da casa dela. Fomos morar em um barraco no meio do mato”, relembra Cláudia.
Em meados de 2012, ela ainda trabalhava com prostituição quando o conheceu, mas detalha que relação dos dois era muito além da cama, até porque a doença do Marcelo, o seu marido, prejudicava a sua vida sexual. “Ele bebia muito e muitas vezes nem conseguimos ter relações sexuais. Mas a gente trocava carinho, se ajudava em casa, ficava na cama. Era um casal de verdade”, orgulha-se Morena.
"Eu chorava muito sentindo falta dele, ainda choro. Perdi o amor da minha vida”. Foto: Chico Peixoto/LeiaJáImagens
Ela estava feliz com a nova vida e relata que ele entendia a profissão dela na época porque trazia renda para casa. Cláudia já tinha se relacionado com outros homens, mas eles a batiam e não queriam nada além de sexo. “É muito complicado encontrar o amor para uma travesti. Muitos homens são interesseiros e pensam na nossa casa, na comida no prato, na lavagem de roupa e no sexo. Alguns me diziam que eu dava de dez a zero nas mulheres que eles já tinham morado, mas era um elogio falso porque só éramos boas se a gente fosse dona de casa e transasse com eles. Dizem que amam por dinheiro. Muitas vezes eu precisei de um amor na vida toda. Não tive isso da minha família”, lamenta ao contar um pouco sobre a trajetória de vida.
Cláudia Morena viveu com Marcelo por pouco mais de três anos e foram muitas dificuldades, financeiras e familiares. “Eu cuidei dele a vida toda e ele caiu muito doente. Em uma época, ficou internado grave. Eu ia visitá-lo no hospital e ele dizia às enfermeiras que eu era a mulher dele e era travesti. Eu me orgulhava disso, ele dizer que a esposa dele era grande e bonita”. Mas, em 2015, Marcelo morreu nos braços dela dentro da casa dos dois, por causa da bebida. “Eu chorava muito sentindo falta dele, ainda choro. Perdi o amor da minha vida”.
Para ela, o amor só chegou mais tarde, mas valeu a pena esperar e viver três anos felizes. "Quem me ensinou a amar foi Marcelo. Ele me botou dentro de uma casa, enfrentou a família e fez tudo por mim. Morreu nos meus braços o meu eterno amor”.
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Comércio ou afeto? Os dois
O suor ainda escorre pelos poros da profissional do sexo A.B quando ela se lembra do primeiro espancamento. Aos 24 anos de idade, a gigante de um metro e noventa dois centímetros de altura volta se parecer com o adolescente de quinze anos exasperado que apanhou de mais de dez colegas de sala. “Meu pensamento era dizer que eu era inútil. Desisti de ir à escola”, conta. Irredutível em ser quem era, A.B largou o nome civil e passou a se apresentar com o nome que escolheu aos comércios em que buscou emprego. Após inúmeros currículos enviados e nenhuma admissão, viu na prostituição o único espaço de trabalho possível. Entre as performances quentes na internet e o perigo das ruas, conta com os clientes fixos para manter alguma segurança física e financeira, cultivando com eles uma complexa relação afetiva e comercial.
“Tem um cliente meu que desde os 16 anos mantenho contato. Conheci através de um amigo e já deixei claro que era garota de programa, fui para cima dele e pedi dinheiro. Eu estava precisando muito e ele me deu”, conta. Com um ano de “batalha”, conforme as profissionais do sexo denominam as jornadas de trabalho, veio o primeiro casamento. “Passamos quatro anos juntos. Ele era mais velho e muito possessivo. Não queria que eu saísse de casa e ficava me mandando cuidar da vida doméstica. Um dia, ele chegou em casa bêbado com uma crise de ciúmes e me bateu, puxei um facão para ele e acabei o casamento”, lembra. Divorciada e emocionalmente fragilizada, A.B. voltou à rotina de prostituição.
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Se, durante o casamento, a mínima estabilidade financeira era dada pelo companheiro, com o fim dele, no primeiro aperto, era ao mais antigo cliente que ela recorria. “Até hoje, peço para ele comprar um gás, pagar uma conta ou até depositar dinheiro para mim se faltar algo em casa. Sou como uma amante, uma rapariga”, relata. Na cama, ele lamenta pela diabetes e os problemas de pressão. Depois do sexo, ou até mesmo sem deixar tempo para que ele seja praticado, por vezes os encontros são marcados por desabafos íntimos sobre a esposa e os filhos, que nem sequer sabem da existência do relacionamento extraconjugal. “Ele se abre sempre comigo e, independentemente da gente acreditar ou não, está sendo paga pra isso”, completa A.B.
Quando um namorado ou affair se apresenta na vida pessoal, precisa dividir os carinhos e atenção com os clientes. Os caminhoneiros, garante A.B., são os mais carentes. “Acontece de eles quererem passar até um pernoite com a gente só pra estar falando, nem tanto pelo sexo. Falam muito sobre os locais que estão indo e as viagens e me perguntam sobre a minha vida”, afirma. A.B. precisa ainda ouvir as esposas, quando desconfiam da traição. “Elas pegam o telefone e ligam para dizer coisa comigo. Vão mais em cima de mim do que do marido delas. Acho que têm que ir atrás deles”, opina.
A.B. sobre desabafos e lamúrias dos clientes: "A gente está sendo paga para isso". (Júlio Gomes/LeiaJá Imagens)
Com os rendimentos do trabalho, A.B. constrói uma casa para ela e outra para sua mãe, acometida por infecção causada pela bactéria H.Pylori, que ocasiona fortes dores de estômago e pode aumentar o risco para o desenvolvimento de um câncer. “Tudo que faço é pela minha mãe, penso muito em dar conforto para ela e poder ir viver minha juventude. Quando ela passa mal, sou eu que cuido”, lamenta. Orientada pelas colegas de trabalho mais experientes, A.B. acredita que mulheres transexuais têm “prazo de validade” no mundo da prostituição. “Trinta anos. Depois disso, a gente fica velha. Ninguém mais quer”, opina. Inspirada pela irmã graduada em enfermagem, A.B. acaba de voltar ao ensino médio, que espera concluir para realizar o sonho de sair da prostituição. “Acho que nessa área tem mais espaço para as trans e travestis. Quero entrar na faculdade e fazer um concurso público. Meus clientes não são meus amigos: quando ele deixa de pagar, para mim, não tem valor nenhum. Da mesma forma que não tenho para ele”, divide.