A pandemia de Covid-19, doença causada pelo novo Coronavírus (SARS-CoV-2) que já causou mais de 101 mil mortes no Brasil, até o momento, obrigou a população a aderir ao isolamento social fechando, entre outros locais, espaços de educação presencial. Neste 11 de agosto de 2020, Dia do Estudante, LeiaJá traz a série "Estudante, você também é herói", com discussões sobre como a pandemia tem afetado os alunos brasileiros, incluindo uma análise de especialistas e membros de entidades de representação estudantil sobre como será o, ainda incerto, futuro dos discentes.
Quadro negro e giz
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Assim que as aulas foram suspensas, surgiu logo uma grande preocupação com o ensino básico, seguida de uma questão extremamente complexa para resolver, envolvendo os estudantes secundaristas de todo o país, o funcionamento das escolas, os sistemas de seleção para as universidades e os calendários acadêmicos do ensino superior em 2021: o que fazer com o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem)? A presidente da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes), Rozana Barroso, afirmou que a entidade entrou fortemente na luta pelo adiamento da prova devido ao atraso de estrutura tecnológica das escolas públicas que deixa os estudantes de baixa renda em desvantagem.
“A verdade é que as nossas escolas públicas em maioria no país não acompanham esse desenvolvimento da tecnologia. Não faz parte da nossa realidade uma sala de informática que tenha um computador, um professor valorizado. Na verdade, fazem parte salas ainda com quadro negro e giz. Precisamos falar da mudança urgente e necessária do perfil das nossas escolas públicas que precisam acompanhar o desenvolvimento da tecnologia, e o papel da educação no combate à desigualdade social, para assim a gente falar, por exemplo, dessa questão das aulas remotas. Nós temos hoje estudantes excluídos da plena cidadania, entendendo a internet como um direito humano do século XXI”, afirma Rozana.
A desigualdade social, escancarada pela pandemia de Covid-19 junto à exclusão digital e perda de renda das famílias brasileiras, na visão de Rozana, que tem 21 anos e estuda em um cursinho popular pré-Enem para fazer faculdade de biomedicina, impedem vários alunos de ter acesso ao direito humano que é a educação e gera um aumento na evasão escolar. Os que insistem, segundo ela, tentam se virar dando todo tipo de jeito.
“Nós estamos tentando nos virar de diversas formas assim como aconteceu nas inscrições do Enem, quando os estudantes se inscreveram com wi-fi do vizinho, wi-fi da padaria, comprando chip para conseguir se inscrever. A UBES está com uma campanha também que é o 'Estudo Pra Geral', que é uma campanha de arrecadação para compra de apostilas preparatórias para o Enem, para distribuição dessas apostilas em cursinhos populares. O estudante continua resistindo, continua na luta, e nós, lutando contra a exclusão digital, como entidades estudantis, estamos tendo também como resposta”, diz a presidente da Ubes.
Questionada sobre como enxerga o futuro da educação brasileira pós-pandemia, em um cenário no qual a inserção e disseminação forçada e a curto prazo do ensino remoto se fez necessária, Rozana afirma prever um futuro de muitas lutas em nome da defesa da escola e da educação como um todo. “Nós acreditamos que o descaso do governo Bolsonaro é objetivo. Nós acreditamos que se continuarmos por esse caminho, o nosso futuro depois da pandemia tende a ser pior ainda. O que os estudantes secundaristas estão fazendo na internet é revolucionário, nós estamos doando muito as nossas vidas para a luta", comenta Rozana.
“Poderes públicos têm o dever de proporcionar internet gratuita”
Carlota Boto, de 58 anos, é professora titular de Filosofia da Educação na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP) e se mostra preocupada com a possibilidade de dispersão de estudantes, tanto no nível básico quanto no superior, uma vez que parte deles não consegue ter acesso a aulas remotas e até os que têm, segundo ela, sentem falta do ambiente de aprendizado. Lidar com esse cenário, na visão da professora, terá implicações a curto e longo prazo.
“A curto prazo, isso vai implicar a necessidade de uma redistribuição dos conteúdos curriculares pelo menos nos próximos dois anos, de maneira que aquilo trabalhado neste ano venha a ser retomado em algum momento no próximo ano letivo. Para tanto é necessário também repensar os métodos escolares, levar os alunos a pesquisarem, a buscar acessar os espaços do conhecimento. A longo prazo, penso que essa experiência vai proporcionar um novo modo de recorrer aos recursos da internet. Os professores e alunos precisam interagir melhor com as ferramentas digitais que hoje estão à nossa disposição”, diz a docente.
O drama que vem da dicotomia entre a necessidade de retomar as aulas, ainda que remotamente, e a falta de acesso de parte dos alunos junto à busca de alternativas para que nenhum aluno fique para trás, também preocupa Carlota. “O ensino remoto é a menos má das soluções. Professores em todo o Brasil têm feito das tripas coração para dar tudo de si na organização dessas atividades remotas. Há muita coisa boa sendo produzida. Eu sou bastante otimista quando observo a inventividade com que os professores têm lidado com os desafios que enfrentam neste momento. Cada instituição está pensando seu próprio projeto pedagógico. Penso que as escolas e as faculdades têm discutido muito os modos de interagir com os estudantes. Não dá para ter uma régua e nivelar as soluções. O que é importante é que não se deixe nenhum aluno para trás. Ano letivo a gente recupera no próximo semestre. Mas as vidas das pessoas que se foram não voltam. Não tem cabimento o retorno neste ano, seria arriscadíssimo que voltássemos sem que haja expressa indicação disso por parte das autoridades da saúde”, diz a professora.
Questionada sobre sua maneira de encarar o futuro da educação após esse momento de entrada abrupta e, de certa forma forçada da tecnologia no ensino, a professora Carlota afirma que a educação e seus agentes terão que lidar com a presença tecnológica no processo pedagógico e as escolas públicas necessitam de investimentos para isso. “Eu penso que a educação do futuro terá de lidar com a tecnologia. A internet é um mundo a ser acessado na busca do conhecimento. Penso que os poderes públicos têm o dever de proporcionar internet gratuita às pessoas em todos os espaços. É preciso investir na escola pública. E isso passa pelas ferramentas digitais. O ensino do futuro se valerá dos meios remotos. Mas não será a distância. Isso é o que eu espero”, projeta.
Uma geração de profissionais perdida por falta do Estado
Iago Montalvão tem 27 anos, é estudante de economia da Universidade de São Paulo (USP) e presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE). Ele destaca os fortes impactos que a implementação das aulas remotas trouxe para os estudantes no nível superior de ensino por diversas razões, como falta de acesso de alunos de baixa renda, diálogo e tempo de preparação o suficiente para implementar o novo modelo. Ele também aponta para diferenças de tratamento dadas ao tema em diferentes redes de ensino.
“Dentro das [universidades] privadas você tem essas que são grandes conglomerados de educação, universidades lucrativas que simplesmente de uma hora para outra enfiaram goela abaixo nos estudantes um tipo de ensino remoto que muitas vezes deu problema, que muitos estudantes não tinham as condições em casa, muitos estudantes não se prepararam para poder conseguir ter acesso a isso. Sem discussão, muito na linha dessas universidades manterem a linha da sua visibilidade enquanto instituição que não parou. Já nas públicas você teve muitas situações particulares. Você tem por exemplo a USP e a UNICAMP que no início já buscaram dar alguma assistência e auxílio aos estudantes, mas também tiveram pouco tempo para discutir como seria a transição para esse modelo remoto”, conta Iago.
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Iago também destaca as inúmeras dificuldades que são inerentes ao presente momento, uma vez que há muitas realidades de perfis diferentes de estudantes em jogo em universidades de todo o País. “Mas a grande encruzilhada é o seguinte: é como você conseguir dar garantia de que nenhum estudante seja prejudicado, porque você tem estudante que não consegue ter acesso nessas aulas a distância, e isso efetivamente. Você tem problemas inúmeros desde a falta de um computador, de uma internet, que é o mínimo, até gente que não tem um cômodo em casa para estudar, que tem barulho em casa, tem problemas com a família, enfim, tem de tudo e como solucionar esses problemas? É muito difícil você solucionar na totalidade. Mas por outro lado, como é que fica também essa questão do cronograma? Porque você tem estudantes que ingressariam agora e já estão com problemas, se você suspende o período letivo do ano todo como é que ficam os ingressantes do ano que vem?” questiona o presidente da UNE.
Uma possível tentativa de solução citada por Iago é a criação de semestres excepcionais com regras acadêmicas mais flexíveis, como já vem sendo feito em algumas universidades públicas e institutos federais pelo país. “Você já tem assistência nos tempos normais, que é bolsa de permanência, bolsa alimentação, moradia estudantil, etc. Mesmo antes da pandemia já eram políticas insuficientes, a gente sempre lutou por mais verba para a assistência estudantil. Hoje a gente está vendo com mais evidência esses problemas, nesse momento você precisa urgentemente ampliar as políticas de assistência para garantir que a galera tenha acesso a esses bens materiais mínimos para conseguir ter acesso às aulas. Ao mesmo tempo, criar flexibilização de regras acadêmicas”, afirmou Iago.
No que diz respeito ao futuro da educação e inserção das tecnologias pedagógicas, o presidente da União Nacional dos Estudantes alega que “a gente tem um governo que tem demonstrado constantemente desprezo pelas universidades públicas em uma tentativa de desmoralização".
"Essa política liberal do governo de enfraquecer a universidade pública e expandir a universidade privada se dá muito pelo viés do EAD, porque é um tipo de ensino que na minha opinião, em determinadas situações, para determinados públicos, é importante. Por exemplo, você tem projetos nas universidades públicas em aldeias indígenas, pessoas que moram em lugares distantes, você tem consórcios como a própria Universidade Aberta do Brasil, que é um estilo de formação EAD para aquela pessoa que não pretende ter uma formação aprofundada na universidade presencialmente, tem dificuldade de deslocamento e prefere fazer uma aula a distância. Eu acho que é legítimo que você tenha esse tipo de modalidade de ensino a distância, desde que você garanta toda a estruturação necessária para que o EAD seja feito com qualidade", acrescenta Iago.
De acordo com um levantamento realizado pelo Sindicato das Entidades Mantenedoras de Estabelecimentos de Ensino Superior no Estado de São Paulo (Semesp), um em cada quatro estudante do nível superior no Estado de São Paulo está inadimplente, registrando um índice de 72,4% maior no mês de abril em relação a 2019 e um crescimento de 32,5% na evasão comparando também os meses de abril dos mesmos anos. Iago aponta para essa realidade de desistências dos cursos como um reflexo do momento de pandemia em que as pessoas se veem forçadas a desistir de seus cursos e cita algumas ações políticas desenvolvidas pela UNE no Congresso Nacional para tentar apoiar os estudantes universitários que, segundo ele, tentam resistir e se virar como podem.
“O que os estudantes têm feito é se desdobrar de várias formas. Galera assistindo aula pelo celular, uma reivindicação grande é que os professores gravem as aulas porque, às vezes, o pessoal não consegue acompanhar ao vivo, porque a internet cai. Agora o principal que a gente tem pautado, principalmente nas públicas, é para que tenha algum tipo de auxílio. Nós temos pautado muito isso no Congresso Nacional, é muito difícil porque o governo dá pouca atenção para essa área. Tem lá no Congresso Nacional um Projeto de Lei que é por mais recurso para assistência estudantil, tem um projeto de lei lá nosso que é o auxílio estudantil emergencial para os estudantes das [universidades] privadas pagarem as mensalidades e terem um auxílio para conseguir se manter nesse período, porque a renda caiu. Você está deixando de formar uma geração de profissionais que no futuro a gente vai sentir, aquilo que o MEC falou na propaganda do Enem, de uma geração de futuros profissionais seria perdida, na verdade já está sendo perdida por falta de assistência do Estado”, diz ele.
Um novo tempo
Cacilda Soares tem 59 anos, é professora de ciências contábeis há 25 anos e atualmente trabalha como coordenadora do sistema Universidade Aberta do Brasil na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Ela iniciou a conversa sobre ensino remoto e a distância esclarecendo que essa não é uma modalidade nova de educação no Brasil, ao contrário do que muitas pessoas parecem acreditar: as primeiras experiências, de acordo com ela, datam de 1923. Nas décadas de 1960 e 1970, a televisão também foi utilizada para este fim e até hoje temos canais como, por exemplo, a TV Cultura e TV Escola.
O problema, segundo a professora, é que o sistema de ensino formal passou à margem dessa realidade enquanto se mantinha no sistema presencial sem integrar a tecnologia nas salas de aula e de repente a pandemia de Covid-19 forçou essa junção de uma vez só. “O fato é que os cursos de ensino fundamental, médio e superior não conseguiram se adaptar ao uso desses recursos tecnológicos. Todos fomos educados no modo presencial, no modo analógico e de repente por conta de uma pandemia nos vemos obrigados a nos transformar em seres digitais. Isso dá um grande impacto em alguns, porque é como se já existisse paralelamente, mas se você estava de certa forma acomodado a viver no paralelo. Deixou de ser um paralelo e a realidade agora é essa. É uma quebra de paradigma sair do analógico para o digital da noite para o dia. Tem um choque muito grande nos usuários, aqueles que são responsáveis por preparar conteúdo, lecionar", opina Cacilda.
Ao ser inquirida sobre como enxerga futuro da educação após a pandemia e a disseminação desse modelo remoto de ensino, a professora revela não saber se haverá um momento após pandemia, uma vez que mesmo com vacina, ainda precisamos conviver com a gripe H1N1, por exemplo, mas, aponta que os alunos, professores e instituições terão que reaprender tudo para viver em um novo mundo permeado pela tecnologia.
“O que será o ano que vem? Eu não sei. Não sei como é que vai ser 2021, saímos de um reveillon muito belo e que reviravolta foi essa no mundo em 2020? O que é 2020 na nossa vida? É um processo que não dá para você ter resposta do que vai ser o amanhã, vamos ter que nos reinventar a cada dia. Nosso papel na sociedade não mudou, eu sou professora, mas o que eu vou ter que fazer mais, o que vai ser exigido mais de mim? Eu já lido com tecnologia, mas e quem não lida? E quem está aprendendo agora? Eu vou reaprender, mas tem gente que vai aprender. É difícil imaginar quando vai ter uma volta, se vai ter uma volta. O que eu to vendo é uma reconfiguração da humanidade, do mundo, das relações humanas. Eu não me arrisco a falar de uma volta, porque acredito que do jeito que era, não volta, vai ser um novo tempo”, imagina a professora.
Confira, abaixo, as demais matérias do especial “Estudante, você também é herói”. Nossos repórteres mostram as rotinas de alunos, da educação infantil à pós-graduação, durante a pandemia do novo coronavírus:
--> Pequenos 'grandes' estudantes e o ensino remoto
--> Isolamento social e a ansiedade na preparação para o Enem
--> A perseverança de Ana e o carinho pela pedagogia
--> Pós-graduação sofre os efeitos da Covid-19
--> Formatura mais cedo: estudantes trocam aulas por hospitais