De acordo com dados divulgados na noite desta terça-feira (22) pelo consórcio de veículos de imprensa, que conta com as atualizações das secretarias estaduais de Saúde, o Brasil atingiu a marca de 18 milhões de infectados pela Covid-19 desde março de 2020. O número surge na mesma semana em que o país amarga as mais de 500 mil mortes decorrentes da doença, além de uma crise política galopante.
Acrescido a isso, na média de 7 dias até segunda-feira (21), o Brasil retornou ao nível de 2 mil mortes diárias decorrentes da doença, superando, inclusive, a Índia, antes epicentro mundial da crise sanitária. E, embora abarque 30% das mortes decorrentes do novo coronavírus em todo o mundo, chama atenção a postura pouco diligente do atual presidente Jair Bolsonaro (sem partido).
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Também nesta segunda-feira (21), quando questionado sobre a falta de declarações públicas no dia em que o país ultrapassou a marca de 500 mil mortos pela Covid-19, o chefe do Executivo chegou a insultar jornalistas e, mais uma vez, retirou a máscara em público.
“Lamento todos os óbitos. Muito. É uma dor na família. E nós, desde o começo, o governo federal teve coragem de falar em tratamento precoce. Como está sendo conduzida essa questão parece até que é melhor se consultar com jornalistas do que com médicos”, ironizou, enquanto promovia alternativas sem eficácia no combate ao vírus da Covid-19.
Desaprovação em alta e críticas à gestão
A gestão de Jair Bolsonaro, marcada por declarações desta natureza, atinge percentuais vertiginosos de desaprovação, e também desperta críticas entre a classe médica, antes apontada como reduto de apoiadores do presidente. Infectologista do Hospital Universitário Oswaldo Cruz, localizado no Centro do Recife, Suennya Brito é uma das profissionais a lamentar os caminhos que levaram o país a acumular meio milhão de óbitos pelo novo coronavírus.
“A partir do momento em que a gente tem um líder, um chefe de Estado como a gente tem o nosso, que trata com muita naturalidade, que se desculpabiliza, que se comporta como se nunca fosse responsabilidade dele o gerenciamento da pandemia - e a gente sabe que é, mas que nunca foi tratado com a seriedade que deveria desde o começo - isso impacta” desabafa a médica, que trabalha na linha de frente do combate à pandemia há cerca de um ano.
Para ela, o Brasil “ficará marcado na história pela falta de planejamento, compromisso com a vida e compromisso com o povo”. “As falhas foram várias. Enquanto o mundo inteiro estava se resguardando, o país escolheu um caminho de achar que ‘era só uma gripe’, que é ‘muito mimimi’, muito alarde, ou que era uma tentativa de derrubar o governo politicamente. E a quantidade de mortos foi aumentando”, disse, fazendo referência ao dia 27 de março de 2020, quando o atual presidente chegou a afirmar que a Covid-19 seria, “para 90% da população”, uma “gripezinha ou nada”.
O papel do presidente da República
Letycia Raila, cientista política formada pela UFPI (Universidade Federal do Piauí) e pós-graduanda em Direitos Humanos pela PUC (Pontifícia Universidade Católica), ressalta que a função do dirigente do país seria, no momento de pandemia, priorizar o bem-estar da população.
“O papel do presidente em uma situação de calamidade pública como a pandemia, seria, prioritariamente, buscar as diretrizes da ciência, para agir objetivamente na diminuição do contágio e conseguir sanar este problema de saúde. Hoje a gente já sabe que a Covid-19 é combatida somente pela vacinação, então é necessário, ou seria necessário, que a função do nosso presidente estivesse ligada à negociação de insumos para a vacina e a questão comercial mesmo, da compra dos imunizantes”, explicou Raila. Segundo ela, só assim seria possível atravessar “a crise econômica, social e institucional” na qual o país está imerso.
Quando questionada sobre a narrativa política construída pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) desde março de 2020, a cientista política aponta como principais equívocos a falta de seriedade do líder e o sentimento antichinês fortalecido em sua gestão. A escalada da sinofobia, refletida também em declarações do ex-ministro das Relações Exteriores Ernesto Araújo, fez com que o presidente se envolvesse em uma verdadeira politização das vacinas.
“A gente consegue perceber ao longo de todo esse período e, inclusive até hoje, a relativização dessa crise sanitária. Existiram situações específicas, como a falta de respostas dos e-mails [da farmacêutica] Pfizer, a briga insistente com o [João] Doria com relação à vacina do Butantan, porque era uma ‘vacina chinesa’, chegando até a ser chamada de ‘vachina’ em alguns momentos, além da própria postura hostil, e algumas vezes desrespeitosas, do Ministério das Relações Exteriores com a China”, destaca, pontuando alguns dos episódios mais escandalosos da gestão bolsonarista, expostos pela CPI da Pandemia no Senado.
Naturalização da morte e bolsonarismo
De acordo com a socióloga e mestranda em sociologia pela UFPE (Universidade Federal de Pernambuco) Maria Eduarda Silva, a naturalização da morte frente aos mais de 500 mil óbitos pela Covid-19 se apresenta como um dos sustentáculos da gestão do atual presidente Jair Bolsonaro (sem partido).
“Esse caráter negacionista do governo contribui para um processo de dessensibilização que afeta a capacidade, sobretudo de seus apoiadores, de reconhecerem o mundo diante de nós e serem afetados pelos processos que compõem a realidade coletiva”, afirma. Ainda segundo a cientista social, “Bolsonaro é o principal vetor de desorganização da realidade brasileira”.
“Uma das consequências diretas desse processo é a dissolução de rituais que compõem as trocas coletivas diárias. Rituais de passagem já não parecem existir. Morre-se um professor e lá se segue uma nota fria de pesar e na sequência as aulas continuam. Perde-se um colega de trabalho e lá está você, diante da necessidade de seguir produtivo. Quase 3 mil pessoas morrem de Covid em 24 horas e as pessoas lêem apenas os números, que em poucos minutos logo serão esquecidos”, diz a socióloga, que aponta como consequência do negacionismo governista a naturalização exacerbada da morte no país.
Para ela, a constante defesa de medicamentos não recomendados pela OMS (Organização Mundial da Saúde), além dos apelos pelo fim do isolamento social e o incentivo do não uso da máscara, apontam para “uma incapacidade de olhar para o presente”. Isso se reflete, por exemplo, na recusa dos seguidores do presidente em "aceitar a finitude do mundo”, representada numericamente pelos efeitos devastadores da pandemia.