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A construção de narrativas, sejam elas literárias, musicais, televisivas ou cinematográficas, assume um papel social e convida o espectador ao exercício da reflexão diante de diferentes contextos. As temáticas aparecem como espelho do cotidiano, ficção e realidade se confundem. Nos versos ou cenas, surgem os mais variados temas: machismo, racismo, homofobia ou misoginia ganham espaço dentro dessas manifestações artísticas. A arte, com toda sua liberdade de criação, passa a ser alvo de problematizações que tem as redes sociais como principal canal de exposição do descontentamento.

Se de um lado temos a turma dos textos “lacradores”, do outro, pessoas afirmam que estamos vivendo a ditadura do politicamente correto e o da fiscalização excessiva. Um impasse cada vez mais acirrado e que está longe de ser resolvido. 

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O LeiaJa.com ouviu artistas, professores, coletivos e consumidores de arte para entender as razões, confrontar discursos e saber até que ponto ficção e realidade se misturam a ponto de interferir na construção do caráter do indivíduo.

“Um dos méritos da arte é justamente o de nos fazer enxergar perspectivas diferentes”

A definição de arte, segundo o Dicionário Aurélio, é a “capacidade ou atividade humana de criação plástica ou musical”. Na sabedoria popular, temos que ela é a maneira pela qual expomos sentimentos ou realidades de mundo. O fato é que a arte toma, cada vez mais, dois caminhos distintos: o de simples entretenimento e o de compromisso ético e social.

O professor de Língua e Literatura da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), Unidade Acadêmica de Garanhuns, João Martins, ressalta o papel da arte e do artista como agentes sociais. “Espera-se da arte um compromisso ético, mesmo que seja limitado ao universo criado pela narrativa. O artista deve ter um compromisso social sim, mas devemos entender esse compromisso de modo amplo. Não é preciso ser ‘panfletário’ para ter compromisso social”, ressalta.

Segundo ele, o universo artístico possibilita a ampliação de perspectivas e o aparecimento de diferentes vozes. “Um dos méritos da arte é justamente o de nos fazer enxergar perspectivas diferentes daquela que as pessoas estão habituadas a tomarem como normal e normativa. A arte que permanece é aquela que remexe nossas certezas – estéticas, filosóficas, morais – e nos mostra outras perspectivas de sermos mais humanos”, defende. 

Quando questionado sobre a possível influência das narrativas nos discursos ou em comportamentos sociais, o professor universitário é categórico. “Do meu ponto de vista, um livro ou um filme pode apenas incitar a reprodução da ficção no real se já houver alguma inclinação latente no indivíduo. Algumas vezes, inclusive, a leitura que se faz é totalmente desviante dos caminhos de interpretação dada pela obra”, explica.

O negro, a mídia e a representatividade

A questão da representatividade de negros e negras na Tv sempre rende calorosas discussões. Acredita-se que a mídia, como meio de comunicação de massa, exerce influência sobre seus espectadores. Logo, tudo que nela é veiculado pode estar a serviço da quebra de paradigmas ou do reforço de alguns discursos carregado de preconceitos e exclusão. 

Para Beatriz Santos (no centro da foto), do Coletivo Cara Preta, os negros sempre estão ocupando na mídia papéis menores e cargos submissos aos de pessoas brancas. “Na televisão e no cinema, estamos sempre ocupando cargos subalternos aos de pessoas brancas, somos em grande escala retratados como vilões, o/a marginal a ser combatido/a, a empregada doméstica, o/a drogado/a. Ainda são poucas as produções que colocam o negro em um lugar plausível, equivalente, igualitário aos que atores e atrizes brancos/as assumem”.

Ela afirma também que esses estereótipos reforçam o pensamento e o discurso racista presentes na sociedade e na mídia. Segundo Beatriz, há um estranhamento, por parte de algumas pessoas, quando o negro ou negra assume um papel de destaque em uma narrativa. “É como se esses lugares não nos pertencessem, ignoram a contribuição cultural, social e intelectual que, continuamente, fornecemos. Ainda somos permeados por uma relação de poder puramente racista e excludente” aponta.

Sob uma perspectiva diferente, a gestora ambiental Helena Silva vê a necessidade de manter o equilíbrio sobre o assunto. Ela acredita que não há exagero ou “mimimi” por parte de grupos negros, mas chama atenção para o fato das telenovelas e filmes apresentarem apenas a realidade. “Quando em uma novela ou filme o negro aparece como pobre ou exercendo a função de empregado doméstico está mostrando a realidade do Brasil, infelizmente é a realidade. Dificilmente você encontra um negro que é diretor. Então, a mídia está aí para expor o que realmente acontece na sociedade”, argumenta.

Monteiro Lobato, mais conhecido por suas obras para o público infantil, tem inúmeras vezes seu nome associado ao racismo. Em 2014, foi levado ao Supremo Tribunal Federal (STF) um pedido de retirada das escolas públicas do livro 'Caçadas de Pedrinho' (1933), de Lobato, por ser considerada racista. Na época, o ministro Luiz Fux indeferiu o pedido. 

Na obra, o autor se refere à Tia Nastácia como “macaca”.  “Tia Nastácia, esquecida dos seus numerosos reumatismos, trepou que nem uma macaca de carvão pelo mastro de São Pedro acima, com tal agilidade que parecia nunca ter feito outra coisa na vida”.  E as associações não param por aí: "Não é à toa que os macacos se parecem tanto com os homens. Só dizem bobagens”.

A representante do Coletivo Cara Preta defende a retirada da obra das escolas. “Não é assim que devemos ser retratadas, não é desse modo que quero que minhas futuras filhas se enxerguem. As escolas públicas são negras, a grande maioria dos alunos são negros/as e pardos/as, é muito duro crescer sem representatividades positivas”, justifica.

Ela também chama atenção para outra obra do mesmo autor, 'Negrinha'. '' Negrinha não teve direito nem a ter um nome, e é assim que o racismo nos trata diariamente, ele substitui nossos nomes por apelidos racistas. A senhora que trata da personagem é totalmente sem coração, trata a menina como se fosse um ser desprovido de sentimentos, mas é uma senhora caridosa e piedosa, diferente do contexto que Negrinha vivenciava sob seus cuidados”, aponta.

As mulheres no audiovisual

A forma como o cinema apresenta a figura feminina é uma problemática que permeia o discurso daqueles que lutam pelas minorias ou pela igualdade de gênero. Para o Coletivo Marcha da Vadias, as personagens femininas são construídas sob a ótica masculina e reforçam estereótipos. Uma das integrantes do grupo, que pediu para não ser identificada, afirma que “A mulher no cinema está relacionada ao olhar masculino. Geralmente elas possuem características físicas, psíquicas e intelectuais que condizem com o que os homens esperam de uma mulher. Se for uma mulher branca e jovem, o papel da boa mãe, esposa e/ou mulher indefesa são bem característicos. No caso das mulheres negras, a hipersexualização de seus corpos é um estereótipo marcante na cultura racista e sexista do Brasil”.

Afirma-se que na sétima arte, a violência contra mulher, física ou psicológica, e a cultura do estupro são temas recorrentes e que, nem sempre, são vistos como reflexão ou educativo, mas, como reforço de um pensamento misógino que alimenta a sociedade patriarcal. Sobre isso o coletivo expõe que há sim a necessidade de se retratar essas temáticas no cinema e televisão, desde que não sejam naturalizados ou como ações não passíveis de punição. “Temas referentes à cultura do estupro e à violência devem ser abordados nos filmes. Entretanto, estes atos não devem ter um tom de normalidade. Deve-se deixar claro que são ações inaceitáveis e passíveis de punição. Deve-se demonstrar que os personagens que praticam atos de violências em qualquer nível devem ser punidos. Não pode ser permitido que estes atos sejam entendidos como naturais ou sejam tratados como ações impunes”, argumenta a militante.

O cineasta argentino Gaspar Noé é responsável por um dos filmes mais polêmicos da história. Em 'Irreversível' (2002), a personagem Alex, interpretada pela atriz Monica Bellucci, é estuprada e agredida. A cena, com duração de nove minutos, é considerada a mais forte sobre o tema. Em entrevista à revista Época, Nóe afirmou que a temática devia ser explorada ao máximo na narrativa, pois 'Irreversível' fala sobre violência. “Irreversível é um filme sobre violência. Quando se escolhe um tema, ele deve ser exposto ao máximo. Se amanhã eu fizer um filme de humor, me esforçarei para ser muito engraçado. Quando as imagens são fortes de uma forma ou outra, elas ficam gravadas na mente das pessoas. Quando 'Irreversível' estreou, o impacto foi muito forte. Por isso, segue existindo no subconsciente de muita gente”, expôs.

Seguindo uma perspectiva similar, o filme 'Baixio das Bestas' (2006), do diretor pernambucano Cláudio Assis, apresenta uma cena de estupro coletivo, protagonizado pela atriz Dira Paes. Fala-se que o episódio reforça a questão da cultura do estupro e coloca a mulher em condição de submissão. 

“Filmes como esse (Baixio das Bestas) tratam a violência contras as mulheres de maneira irresponsável. Cria-se uma estética em que a mulher é tratada como objeto e a violência glamourizada. Não há uma discussão sobre essa violência ou como essas mulheres são vistas no filme. Todos os diretores deveriam sempre fazer um avaliação de sua responsabilidade na produção de um filme e refletir como sua obra pode contribuir ou não ainda mais para a violência. A arte possui uma responsabilidade social e devem refletir sobre como contribuem para a violência na vida real”, aponta a representante do Coletivo Marcha das Vadias.

O cineasta defende sua obra. Para Assis, o longa-metragem é uma denúncia sobre a violência sofrida pelas mulheres. “O filme é uma denúncia sobre a cultura do estupro, que não só acontece aqui em Pernambuco, mas em todo o país. Quando foi lançado, recebi elogios, então não entendo o porquê da crítica. Cada pessoa tem um jeito de interpretar e encarar essa temática. O projeto, meu e do Hilton Lacerda, é denunciar essa ação. É uma obra de arte e deve-se entender a função dela”, argumenta.

A vigilância e o politicamente correto

Se de um lado temos pessoas e grupos que questionam e problematizam a fim de romper com alguns discursos entranhados na nossa cultura, do outro lado encontramos quem enxerga esse movimento como exagero promovido pela onda do politicamente correto.

O professor de Filosofia e História da Arte Henrique Farias acredita que é necessário ter bom senso e o politicamente correto está ligado à ideologia político-partidária. “O animal humano se diferencia dos outros animais por ter a aptidão do bom senso. Por isso, entendo que o politicamente correto se direciona principalmente a uma necessidade de um cuidado presente no campo da linguagem, seja este ligado ao entretenimento ou aos diálogos de bar. O ponto central é que o cuidado, quando passa a ser desmedido, mostra um objetivo estritamente de natureza política, ou em seu sentido primário, de poder partidário”.

“Como pressuposto ideológico do socialismo, o politicamente correto é utilizado como mais uma artimanha da extrema esquerda. Mesmo quando suas consequências e objetivos possam parecer humanistas, destrói a responsabilidade individual, que é a base do liberalismo, sempre sob uma esteira linguística que termina frequentemente numa abordagem que pressupõe grupos ou minorias. Por isso, acredito que uma proposta de reformulação das leis que defenda o indivíduo enquanto indivíduo, preservando o bom senso humano, seria mais interessante do que fiscalizar humoristas, por exemplo”, complementa.

A opinião é contestada pelo professor universitário João Martins: "Para aqueles que acusam pessoas de abraçarem a vigilância do politicamente correto, afirmo que ainda não entenderam que o maior mérito da arte é o de nos tornar menos desumanos. O que se espera da sociedade é que ela evolua para a civilização, o que não significa progresso tecnológico, mas uma organização em que os que estejam em condições de fragilidade sejam protegidos pelos que estão em melhor posição".

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