Mil oitocentos e vinte e seis dias: é esse o tempo que a vereadora Marielle Franco (PSOL), de 38 anos, e o motorista Anderson Gomes, de 39 anos, foram assassinados no bairro do Estácio (RJ). Mil oitocentos e vinte e seis dias: é esse o tempo que a justiça não responde quem mandou matar Marielle Franco. Mil oitocentos e vinte e seis dias: é esse o tempo que a filha de Marielle não tem mais a mãe, que a irmã não tem mais a outra, que a mãe não tem a filha, que o filho de Anderson Gomes não tem mais o pai e que ninguém sabe o porquê de Marielle e Anderson terem sido assassinados com 13 tiros contra o carro em que estavam. A quantidade de dias corresponde a cinco anos desde que tudo aconteceu.
Marielle Franco, eleita democraticamente na cidade do Rio de Janeiro com 46.502 votos como vereadora do Rio de Janeiro, foi assassinada brutalmente junto ao motorista Anderson Gomes, com 13 tiros desferidos contra o seu carro enquanto saía de um evento no dia 14 de março de 2018. O crime de violência política é considerado.
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Presidente da Comissão de Defesa da Mulher, Marielle também fez parte de um grupo na Câmara que monitorava a intervenção federal no Rio de Janeiro e havia sido escolhida como relatora poucos dias antes do seu assassinato, no dia 28 de fevereiro. A parlamentar criticava a intervenção federal e denunciava abusos policiais e violações aos direitos humanos nas favelas do Rio de Janeiro. Inclusive, o seu último discurso na Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro foi em crítica à intervenção federal nas favelas.
“Não sou livre enquanto outra mulher for prisioneira, mesmo que as correntes dela sejam diferentes das minhas”, foi a última frase dita por Marielle Franco, parafraseada pela escritora americana negra Audre Lorde, no último evento que participou minutos antes de ser assassinada. O evento era sobre “Jovens Negras Movendo as Estruturas” e, desde então, Marielle passou a ser um símbolo para parte da população negra e para as mulheres negras na política.
O aniversário de assassinato de Marielle e Anderson, vítimas de violência política e de gênero, representa força e resistência para a política brasileira.
Sendo assim, a irmã de Marielle, a atual ministra da Igualdade Racial Anielle Franco, criou o Instituto Marielle Franco após o brutal assassinato da irmã, que nasceu com o objetivo de “lutar por justiça, defender a memória, espalhar o legado e regar as sementes de Marielle”.
O site do Instituto mostra um cronômetro que consta o tempo sem respostas sobre o assassinato de Marielle Franco. Até a publicação desta matéria, o cronômetro constava 59 meses, 26 dias, 14 horas, 27 minutos e 10 segundos sem respostas.
Além disso, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) propôs um projeto de lei que cria o Dia Nacional Marielle Franco de Enfrentamento da Violência Política, de Gênero e Raça, que está em tramitação no Congresso Nacional. De acordo com a doutora em ciência política e professora da Universidade Estadual de Nova Iorque, em Albany, Tassiana Moura de Oliveira, a homenagem a Marielle é importante para manter viva a memória da luta e do trabalho da parlamentar, e também serve para lembrar que “uma tragédia como esta não aconteça de novo”. “E para que mulheres negras da favela de todo o Brasil, excluídas de um projeto de cidadania neste País, se inspirem e saibam que houve alguém que lutou por todas elas e que elas podem fazer o mesmo”.
Questionada se o projeto de lei do presidente Lula para instituir o Dia Nacional Marielle Franco e o reconhecimento da luta dela pode incentivar que mais mulheres e mulheres pretas entrem na política, Tassiana Moura explicou que “não é tão simples”. Ela detalhou uma série de problemáticas e, dentre elas, a necessidade de políticas públicas e o investimento financeiro nas campanhas femininas. “Além da homenagem e de toda a luta do Instituto Marielle Franco, liderado pela Anielle, que agora é ministra do governo Lula, é preciso ter políticas públicas que de fato deem condições para mulheres entrarem na política. Investimento financeiro nas campanhas femininas, proteção contra violência de gênero, creche e escola integral para os filhos dessas mulheres que querem entrar na política são alguns exemplos. Não adianta ter cota de candidatas se os partidos não investem nas campanhas. É preciso estimular e proteger as mulheres das mais diversas identidades que queiram seguir esse caminho”, afirmou.
A doutora em ciência política também falou sobre o “grande golpe na nossa democracia” que o assassinato de uma vereadora eleita democraticamente representa. Para ela, o impacto mais importante é “saber que a nossa democracia ainda é frágil” e que, mais ainda, “é bom saber que tem muita gente trabalhando para manter o projeto da Marielle vivo”. “Quando este mesmo assassinato não recebe resolução mesmo depois de 5 anos, sabemos que nossas instituições estão longe de funcionar de acordo com o esperado. Então, como se não fosse terrivelmente prejudicial à nossa democracia o fato de termos uma representante do povo perdendo a vida por motivos políticos, as nossas instituições de justiça ainda não são capazes de dar uma resposta ao caso”, salientou Tassiana Moura de Oliveira.
Violência política
O estudo “Violência política e eleitoral no Brasil”, realizado pelas organizações de direitos humanos Terra de Direitos e Justiça Global, lançado em outubro de 2022, mapeou 523 casos ilustrativos de violência política no período de 2 de setembro de 2020 e 2 de outubro de 2022, envolvendo 482 vítimas entre representantes de cargos eletivos, candidatos/as ou pré-candidatos e agentes políticos no Brasil.
Cinquenta e quatro assassinatos foram registrados no período, 109 atentados, 151 ameaças, 94 agressões e 104 ofensas, além de seis casos de criminalização e cinco de invasão. Até o primeiro turno das eleições de 2022, entre 1º de agosto e 2 de outubro, 121 casos de violência política foram registrados, sendo praticamente dois casos por dia.
Enquanto isso, até 2018, ano do assassinato, “apenas” uma pessoa era vítima de violência política a cada oito dias. Mas os episódios aumentaram a partir de 2019, quando passaram a ocorrer episódios a cada dois dias. Já em 2022, foram 247 casos, ou seja, um caso registrado a cada 26 horas.
A deputada estadual por Pernambuco Dani Portela (PSOL) é um dos tantos exemplos de violência política com diversas ameaças sofridas, em destaque a episódios que aconteceram em 2022 e a parlamentar, que estava como vereadora do Recife, expôs. Em abril do ano passado, a psolista fez uma denúncia na Polícia Civil para identificar os criminosos que cometeram injúria racial, calúnia, difamação e ameaças de morte contra ela após o pedido da retirada de homenagens a violadores dos direitos humanos no Recife, a exemplo de um busto do general Humberto Castelo Branco, primeiro presidente do Brasil depois do golpe militar de 1964.
De acordo com Dani Portela à época, tudo começou depois que uma página bolsonarista chamada “Endireita Pernambuco” fez uma publicação com o requerimento e questionou: “Quem ela vai querer colocar? Fidel Castro?”. “A partir daí, vários blogs de direita, de público conservador, bolsonarista, fundamentalista, retransmitiram a provocação como se fosse verdade”, contou, ao g1.
Ao LeiaJá, Dani Portela afirmou, a partir de uma pesquisa realizada pelo Instituto Marielle Franco, que 87% das mulheres que foram candidatas em todo o Brasil sofreram algum tipo de violência durante a campanha eleitoral, e que essas violências “podem vir de diversas formas”. “Eu sofri ameaças à minha própria vida em detrimento daquela questão. E na campanha política eu acho que se inaugura uma coisa que fazia tempo que não víamos: é comum que você tenha divergências e posições políticas diferentes, só que a ascensão da ultradireita, radicalização dessas pautas e a consolidação da extrema direita dentro de um governo genocida inaugurou um novo tempo e trouxe um ódio para a política muito grande. Eu não quero divergir do outro na base das ideias ou de debate político, eu quero aniquilar o outro. O bolsonarismo traz esse sentimento de aniquilação das diferenças”, afirmou.
“Muitas delas [das violências] caracterizamos como violência política de gênero, que é uma tentativa de dizer que aquele lugar não é para ser ocupado por você. E essa violência nos atravessa mesmo depois de eleitas. O que chama atenção é que Marielle não recebia ameaças, não tem esse histórico. Ela foi morta da maneira que foi, mesmo sem ter anteriormente recebido ameaças”, pontuou.
De acordo com a deputada estadual, o Partido Socialismo e Liberdade, legenda que a vereadora carioca também fazia parte, várias parlamentares têm proteção policial para poder exercer os mandatos. “Elas foram eleitas pelo povo e, depois de eleitas, precisam de proteção para dar continuidade às suas vidas sofridas, em especial as mulheres trans e travestis, e também as mulheres negras”.
Investigação
O policial militar reformado Ronnie Lessa, acusado de ter feito os disparos que mataram a parlamentar e o motorista, e o ex-policial militar Elcio de Queiroz, acusado de dirigir o carro usado na execução, estão presos. Mas os réus nunca revelaram quem mandou matar Marielle Franco e Anderson Gomes.
Numa sexta troca de comando da investigação, na semana passada, depois que parentes das vítimas se reuniram com a força-tarefa do Ministério Público do Rio de Janeiro, o delegado Guilhermo Catramby é quem vai conduzir o inquérito na Polícia Federal.
De acordo com entrevista do presidente da comissão de Segurança Pública da OAB-RJ Rafael Borges à Natuza Nery, da GloboNews, a falta de respostas para o caso mostra que as autoridades do Brasil falham não apenas para investigar crimes políticos, mas homicídios na sua totalidade.
Dia Nacional Marielle Franco
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) encaminhou, na última quinta-feira (9), ao Congresso Nacional o projeto de lei 1086/2023, que institui o Dia Nacional Marielle Franco de Enfrentamento da Violência Política de Gênero e Raça. O presidente pediu regime de urgência na tramitação do projeto nesta segunda-feira (13), um dia antes da celebração da data, quando aprovada.
A homenagem chama atenção à sub-representação das mulheres na política que perpassa o ambiente político e a vivência das mulheres no espaço de poder, que é a violência política de gênero contra as mulheres.
“A violência política contra as mulheres é um problema de direitos humanos que atinge as democracias e impede o progresso em direção à igualdade efetiva e, portanto, ao desenvolvimento humano sustentável. É um problema latente em nível mundial, que repercute na dinâmica democrática em termos de gênero e se manifesta diariamente, embora com mais intensidade durante os processos eleitorais, no exercício da cidadania política das mulheres”, pontuou o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, e a Entidade das Nações Unidas para a Igualdade de Gênero e Empoderamento das Mulheres, em documento.
Apesar de todo o reconhecimento ao que a vereadora carioca representou e representa à sociedade, a Dani Portela lamentou que tenha acontecido algo tão trágico para que houvesse a saudação, e enfatizou o pedido de justiça para que os criminosos responsáveis sejam encontrados. “Esse dia em defesa desse direito para todos, é um dia que marca também um pedido de justiça. Lamentamos que o nome de Marielle tenha se tornado mundialmente conhecido depois de um crime que entendemos como feminicídio político, com o objetivo de silenciar essas lutas. Mas, na verdade, a morte não foi capaz de silenciar Marielle Franco. Muitas sementes e muitas Marielle surgiram clamando por justiça, igualdade, e vão dar sequência à essa luta”, cravou.
A deputada estadual ressaltou a importância da homenagem à Marielle Franco, principalmente tendo em vista as vozes que a parlamentar representava e representa ainda mais depois do seu assassinato. “Quando falamos de Marielle sempre colocamos os lugares de onde ela veio. Mulher negra. Favelada. Lésbica. Defensora de direitos humanos. Vereadora. A voz de Marielle ecoa por todos esses lugares plurais e diversos. Esse Dia Nacional é muito importante na luta de todas essas vozes que o corpo de Marielle trazia, de vozes vindas de periferias de todos os lugares deste País, que ousaram e ousam ocupar o lugar ao centro do poder, das decisões políticas”.
De acordo com Portela, o Brasil é o País que mais mata defensoras e defensores dos direitos humanos do mundo, o que reforça a representatividade de Marielle. “Os tiros que assassinaram Marielle mataram um pouco de cada uma de nós. Mas é do luto que precisa vir a luta. Não por acaso, o símbolo que Marielle trazia muito forte na sua campanha era o girassol, e uma frase que era lema dela era da cultura africana ubuntu: eu sou porque nós somos. Ressignificamos esse luto em luta e desse girassol que Marielle levava e carregava em si, muitas sementes nasceram na luta por justiça de Marielle Franco e se espalharam pelo Brasil e pelo mundo inteiro”.