Um arranjo feito entre o Poder Judiciário e a mídia para insuflar a opinião pública sustenta um golpe parlamentar que avança no Congresso. A opinião é do advogado e ativista de Direitos Humanos Renan Quinalha. Ele faz doutorado como estudante convidado na Universidade de Brown, nos Estados Unidos.
Para Quinalha, o pedido de impeachment que tramita na Câmara dos Deputados atualmente não tem base jurídica legítima. Para que o processo fosse legítimo, seria necessária a comprovação de crime de responsabilidade, algo que, segundo ele, não ocorreu no governo da presidenta Dilma Rousseff.
##RECOMENDA##Na avaliação do advogado, o processo que corre no Congresso é um golpe parlamentar e o governo deve, sim, procurar revisão tanto no Supremo Tribunal Federal (STF) quanto em instâncias internacionais, como a Corte Interamericana de Direitos Humanos (OEA).
“Não é mais o mundo dos anos 1960 em que o golpe teve apoio dos EUA e que não havia onde recorrer no âmbito internacional. Vivemos em um mundo mais multipolar que tem organismos internacionais que podem reavaliar essas decisões e gerar um constrangimento internacional”, afirma.
As ilegalidades no Brasil sempre ocorreram com as populações marginalizadas, lembrou Quinalha. Mas agora, as violações da lei estão ocorrendo com a presidenta da República e o ex-presidente, o que torna tudo muito mais perigoso. “Eu não tenho dúvida de que, se estão admitindo violações contra uma presidenta ou um ex-presidente, é mais uma permissão, um salvo conduto, para que se continue fazendo uma ilegalidade cotidiana contra os negros, os pobres, a população LGBT, os indígenas”, diz ele.
Confira a entrevista na íntegra:
O impeachment tem fundamentos jurídicos?
O pedido que foi aceito se baseia nas pedaladas fiscais. Essas pedaladas não configuram crime de responsabilidade, que é uma premissa básica para o impeachment legítimo. No sistema presidencialista que a gente vive, há uma eleição para mandato fixo. Nenhuma hipótese de crise política ou impopularidade, de crise econômica, pode encurtar ou abreviar o mandato de uma presidenta democraticamente eleita, porque ela foi investida desse mandato nas eleições presidenciais de 2014. Ela só pode ser afastada do cargo, nas hipóteses restritas do impeachment, e há um regramento próprio que prevê algumas situações, que são os crimes de responsabilidade. Tem que ser exatamente o que está previsto. Não pode ter uma interpretação ampliativa. Não é qualquer violação legal que legitima o impeachment. As pedaladas fiscais são uma prática que todos os presidentes anteriores fizeram. Se isso não é mais para ser feito, é uma discussão a ser feita, mas não é motivo para impeachment. Não configura crime de responsabilidade.
O primeiro pedido que tramitou, feito pela Janaina Pascoal, Helio Bicudo, Miguel Reale Júnior, algumas figuras marcadamente de direita, representantes de um pensamento conservador. Ao meu ver falta fundamento jurídico e é uma peça mal escrita, inclusive.
E o pedido da OAB?
A OAB é uma associação corporativa. Ela não foi eleita para isso. Não votei em uma diretoria que anunciou que faria isso se tivesse uma situação de impeachment. Menos ainda que assumiria um protagonismo elaborando ela própria um pedido. Uma série de advogados que fizeram um manifestaram sua contrariedade. A OAB disse que o conjunto da obra basearia o impeachment, mas isso não é motivo nenhum se não significar crime de responsabilidade.
Ela usa o argumento das isenções fiscais para a FIFA, aprovada pelo Congresso, a nomeação do Lula e a delação do Delcídio. Uma delação que sequer ainda tinha sido devidamente homologadas pela justiça ou investigadas quando foram vazadas. No processo criminal, tem que considerar a delação com todas as outras provas. Não se pode julgar uma pessoa porque apareceu seu o nome em uma delação que pode ter sido feita em condições arbitrárias. E a simples delação na atual situação já é motivo para a mídia fazer esse linchamento publico.
É preciso ter mais cautela nessa postura. É estranho que a OAB, uma associação de advogados que deveriam estar preocupados com o direito de defesa e com o contraditório, que são garantias fundamentais da Constituição de 1988, assuma uma postura de linchamento público e de culpabilização sem nenhum elemento de prova.
Ao contrário do que diz o presidente da OAB, que foi uma questão técnica, isso é uma mentira. É uma balela, porque é um ato eminentemente politico e ideológico. Não há fundamento legal, em qualquer um dos dois pedidos.
Tem muita gente que fala que o impeachment sempre é politico. Qual a base jurídica para que ele possa acontecer?
O direito nunca é neutro e apolítico. Ele sempre reflete disputas reais da sociedade. Pode haver divergências de interpretação. Mas o impeachment não é político. Há uma autonomia do direito em relação a política. Não pode sustentar qualquer coisa dizendo que é legal quando ela não tem fundamento. O importante é entender os fundamentos legais dessa postura. A gente tem uma lei, que é a lei 1.079 de 1950, que já dispunha sobre o impeachment, conhecida como Lei do Impeachment. Há uma discussão depois sobre como ela vai ser recebida pela Constituição de 1988. Mas o STF em decisão recente ele adapta essa lei à Constituição, os ritos que são necessários.
Na Constituição, no artigo 85, ela diz que são crimes de responsabilidade, crimes contra a existência da União, contra o exercício dos direitos políticos sociais, individuais, contra a probidade administrativa. Óbvio que existem fatores políticos que influenciam o impeachment. Mas embasamento jurídico é fundamental para que isso seja legitimo. Quem julga o impeachment não é o Supremo Tribunal Federal, e sim o Congresso Nacional, o que torna mais politico esse julgamento. Mas mesmo assim, não é só formar uma maioria e derrubar a mandatária. É necessário base jurídica. A partir desse momento que se utiliza o impeachment apenas porque a força no Congresso é maior, isso tem um nome: chama-se golpe parlamentar e não impeachment.
Qual o papel do STF nesse processo?
O STF pode verificar se o rito esta de acordo com a legalidade. O impeachment é uma figura que esta prevista na legislação e que têm critérios legais para ele acontecer e para a apreciação de mérito. É difícil que o STF entre no mérito. Ele vai mais observar o rito.
O Supremo pode ter um controle. Se o ato no procedimento violar o que esta na legislação pode determinar nulidade e se retornar a situação anterior. O impeachment não seria válido. Ele vai mais verificar se o rito está sendo feito corretamente. Então, é preciso pontuar isso.
O presidente tem que ser julgado por crime de responsabilidade pelo Senado. Isso torna a decisão mais política, mas isso não significa que ela não tem que ter critério legal, jurídico. Uma decisão de primeiro grau que manda um negro pobre da periferia jovem que roubou um pacote de supermercado para a cadeia, ou uma pessoa que foi pega fumando baseado é uma decisão política também. As decisões no direito carregam conteúdos políticos. Isso não significa que o direito seja reduzido inteiramente à politica.
Ele tem que estar baseado em leis previamente estabelecidas abstratas, universais e válidas para todos. Tem uma especificidade, suas decisões precisam estar baseadas em uma lei que existe. Esse procedimento precisa ser seguido e o crime de responsabilidade precisa ser comprovado. Se o Congresso Nacional entender que houve crime de responsabilidade e fazer um julgamento politico sem fundamentar sua decisão, o STF pode sim rever essa leitura, cabe a ele dar a última palavra em relação a Constituição.
A gente acha que é improvável porque isso nunca ocorreu. Porque o STF nunca invadiu o campo da competência de outro poder. Existe uma certa competência sim do STF de avaliar se está de acordo com a Constituição, mas poderia gerar uma crise institucional. Ao meu ver, o governo precisa levar isso até o STF sim, porque está acontecendo uma manobra parlamentar com o apoio das classes mais conservadoras. Querendo aplicar um programa de de governo, que não foi eleito. O impeachment está mais na fronteira, entre a política e a Justiça, mais que outras que naturalizamos o entendimento como técnica, mas no fundo são politicas também. Tudo isso para dizer que tem uma lei e um critério legal que tem que ser seguido para que isso aconteça. Se não tiver vai ser só uma manobra parlamentar.
Uma vez que esse golpe parlamentar ocorra, é possível recorrer juridicamente em alguma instancia?
É preciso esperar para fazer uma avaliação dessas estratégias quando já tiver o fundamento expresso da decisão. Se tiver qualquer atropelo de procedimento, como acredito que vá ter com essa ânsia e esse desespero dos deputados. O Cunha aceitou esse pedido no começo do ano, o trâmite não ocorreu naquele momento quando as manifestações estavam minguados. Eles esperaram uma degradação da situação política e econômica. É necessário ressaltar o caráter oportunismo da situação e de modo que o governo não possa recuperar sua base de apoio. Se tiver atropelo de procedimento o STF vai poder julgar isso. Além disso, Dilma vai ter o direito de defesa dela em algumas sessões na Câmara e no Senado e que esses elementos sejam feito ao debate público para mostrar o absurdo que está havendo.
O STF vai verificar legalidade a decisão. É possível em tese levar para a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Em 1998, o Brasil se submeteu à jurisdição dessa corte. Temos que cumprir internamente esses artigos e normas. Se comprovar de fato de que há um atropelo e uma perseguição é possível que chegue à OEA, o que criaria uma situação constrangedora para o Brasil na comunidade internacional. Ou mesmo pode ocorrer a suspensão do país no Mercosul.
Não é mais o mundo dos anos 1960 em que o golpe teve apoio dos EUA e que não havia onde recorrer no âmbito internacional. Vivemos em um mundo mais multipolar que tem organismos internacionais que podem reavaliar essas decisões e rediscutir e gerar um constrangimento internacional. Há uma comunidade internacional formada para quando o estado viola o direito de seus cidadãos nacionais e o cidadão não pode recorrer ao Estado porque ele é o violador, e você pode recorrer à essas instâncias.
O governo precisa levar a situação a esses órgãos e usar a opinião pública internacional que é muito mais arejada que a nacional sufocada pela mídia concentrada em alguns grupos empresariais para que essa comunidade consiga exercer uma pressão sobre o Brasil e sobre esses setores que estão tentando ganhar o impeachment no grito sem nenhum tipo de fundamento legal.
Existe uma estratégia de perseguir juridicamente o ex-presidente Lula, de forma abusiva, para sustentar o impeachment à Dilma, mesmo que esses dois processos não tenham nenhuma ligação juridicamente?
As coisas precisam ser lidas no seu conjunto. Se for para levar para uma instancia internacional é preciso que leve conjunto de fatos, encadeamento de violações de direitos, orquestradas por setores do Poder Judiciário, pela grande mídia, em alguns veículos em especial, e que juntos conseguiram criar uma comoção social suficientemente forte para deixar a vontade a oposição assumir uma postura a favor do impeachment – esse golpe – e criou uma situação confortável para partidos da base aliada romperem com o governo.
Essa narrativa vem desde a eleição de 2014, quando o PSDB não aceitou aquela derrota nas urnas quando pediu recontagem e questionou junto ao TSE. E o impeachment começou a ser usado como chantagem. E os vazamentos são seletivos e abastecem a mídia para gerar julgamentos públicos e linchamentos de forma parcial sem que a investigação seja concluída. É preciso que haja muita investigação sobre corrupção, em todos os níveis, elas precisam estar de acordo com a legislação e não com um tipo de arranjo nesses vazamentos seletivos. O Judiciário instrumentalizou a mídia para levar adiante as violações de direito que ele cometeu a ponto das pessoas acharem normal vazar conversar privadas sem nenhum relação com esse processo. Vazaram conversas do Lula com a Marisa simplesmente para gerar constrangimento público. Isso é uma violação do direito à privacidade. É um absurdo fazer isso com qualquer cidadão comum. É absurdo fazer isso com o ex-presidente a a Presidenta.
Com a presidenta, gera risco à própria segurança do país, sendo que o juiz Sergio Moro nem era competente, porque ela goza de foro privilegiado como o próprio Teori já decidiu. Há uma narrativa que foi criada, que foi construída, uma serie de fatores, de ressentimento de classe, de ódio, de problemas, de fazer escolhas erradas, Para que a mídia se sentisse a vontade para fazer essa propaganda aberta e levar esse projeto adiante. Há um projeto de um golpe parlamentar de esses setores que está atualmente em curso no país e em curso muito avançado.
O Supremo está pressionado?
Tem muita pressão sobre o Supremo. O Supremo tem resolvido grande parte das questões da democracia brasileira. Existe um processo de judicialização das questões sociais e da política no Brasil. O Supremo precisa resolver questões importantes de direitos fundamentais.
O STF consagrou um direito a mais a união homoafetiva que não passaria no Congresso. O problema não é uma judicialização, mas o problema é quando a judicialização vira um ativismo, quando o Gilmar prejulga em entrevistas, ele diz o que ele acha antes de receber o processo. Essas posturas do Sergio Moro e do Gilmar Mendes revelam que eles não têm mais a imparcialidade necessária para poder continuar conduzindo esses processos ou atuando nesses processos. Já mostraram ter visão muito interessada. É preciso levantar a suspeição desses juízes nesses casos e pedir providências no CNJ contra esses magistrados que estão violando regramentos da própria magistratura.
Depois que passar tudo isso, vão ter cicatrizes para o Brasil de todos esses abusos que ocorreram?
Sem dúvida nenhuma. O Estado de Direito e a Lei no Brasil – direitos de modo geral – sempre valeram para uma parcela muito pequena na população. O Brasil se mantém em cima de muita ilegalidade sobretudo contra populações marginais e e vulneráveis. Contra setores excluídos e marginalizados. Essa é/era uma das tarefas da esquerda, fazer que a Constituição valesse não para 20% mas que ela valesse cada vez mais para todos da população brasileira. O fato de haver ilegalidade cotidiana não justifica que haja ilegalidade contra o Lula ou a Dilma. A ilegalidade cotidiana também está chegando em um outro lugar. Fica mais claro, mais evidente. Tem uma maior repercussão da ilegalidade porque está envolvendo autoridades, natural que gere maior repercussão.
Essa postura “no fundo eles devem ter roubado alguma coisa, no fundo não tem problema soltar uma gravação porque eles são culpados”. Essa postura que esta legitimando excessos do Poder Judiciário, violações ela é autoritária e antidemocrática. Vai acabar justificando depois o endurecimento da democracia brasileira, e a restrição de direitos fundamentais. Já e uma democracia frágil, que não é válida para todos. Mas ao invés de aprofundarmos a democracia, tem gente querendo legitimar essas violações. Como se os fins justificassem os meios.
E a justiça, está envolvida nisso?
O sistema de justiça está implicado nisso, nessas violações. Um sistema de justiça é quem vai fazer um juízo sobre a legalidade, é quem vai assegurar os direitos. Quando alguém acha que seu direito foi violado, você recorre ao sistema de justiça. O poder político em si, cometendo ilegalidades, isso pode acontecer historicamente o judiciário existe para colocar um freio. O Judiciário está cedendo a uma pressão por linchamentos públicos, por justiçamentos, e uma pressão popular insuflada pela mídia. Isso é muito perigoso. Porque aí o Judiciário não está se pautando pelos direitos, mas pela voz das ruas, por outros tipos de discurso, ele tem que se pautar pela legalidade e pelos direitos dos seus cidadão. Não pode se pautar por outros discursos. O Judiciário tem que assegurar que os direitos são garantidos e a lei e respeitada. Agora está acontecendo de forma generalizada e evidente. Isso é muito perigoso porque mina a democracia.
Da Agência PT de Notícias