Toda pessoa com deficiência visual deseja conquistar a independência para caminhar sem o auxílio dos outros. Para alguns, o uso da bengala é suficiente. Para os que desejam reduzir ainda mais os obstáculos e não temem os cães, o auxílio do cão-guia é a melhor alternativa. No Brasil, há projetos e institutos que selecionam, treinam e doam cães que ajudam cegos a terem mais mobilidade.
O tempo entre a inscrição do interessado e a chegada do cão pode ser longo, como aconteceu com o publicitário Milton Carvalho, 31 anos, que tem cegueira congênita. Ele esperou em torno de cinco anos por Shiva, uma cadela da raça labrador, preta, de quatro anos de idade. O primeiro encontro com Shiva aconteceu em agosto deste ano, em Brasília, na sede do Projeto Cão-guia. A dupla (cão e deficiente visual) passou pelo processo de adaptação, que durou 15 dias.
##RECOMENDA##Apesar do longo tempo de espera, Milton comemora os benefícios que a chegada da sua companheira lhe trouxe. “Quando eu usava bengala era complicado, pois a ruas do Recife são muito complicadas para um cego andar, existem muitos obstáculos. Os piores são os bueiros, os canos de ferro que são colocados nas calçadas, o deterioramento, além das cadeiras de bares colocadas nas calçadas. Esses obstáculos atrapalham demais a nossa mobilidade”, destaca.
Ele conta que o cão e a pessoa que o adota precisam ter um perfil que se adeque um ao outro. “O cão passa de dois a dois anos e meio sendo preparado para atuar como cão-guia. Primeiro ele passa pela fase de socialização, é acolhido por uma família, e depois ele passa por um treinamento com um profissional capacitado para esse trabalho. Não é toda pessoa cega que tem perfil para adotar um cão-guia, pois nem toda pessoa gosta de cachorro e ainda tem algumas que tem medo do animal”, explica Milton.
O publicitário também destaca os cuidados que os projetos e institutos exigem que as pessoas tenham para receber o cão-guia. Vacinação em dia, bons tratos e demais cuidados com a saúde e bem-estar dos animais são exigidos e acompanhados de perto pelas instituições que doam os cães. “O cão não é uma bengala que você chega em casa e joga atrás do armário. Ele é um ser que tem necessidades de atenção, de alimento e cuidados com a saúde. Antes de uma pessoa receber um cão-guia, o projeto verifica se o animal será bem aceito pelo deficiente e pela sua família, para assegurar que o cão seja bem tratado”, menciona o publicitário enquanto afaga Shiva, que também é o xodó do seu filho Pedro e da esposa Iolanda.
Além de ter que superar os entraves para conseguir adotar um cão-guia e os obstáculos das ruas com a ajuda deste que é considerado o melhor amigo do homem, as pessoas que adotam o animal ainda têm que lidar com o descumprimento da lei. Os relatos são de descumprimento da Lei 11.126/2005 e do Decreto Federal 5.904/2006, que permitem a entrada com o cão em ambientes de uso coletivo (restaurantes, shoppings, aeronaves, supermercados, táxis, ônibus, metrôs, entre outros). “Vou ao trabalho de ônibus diariamente e não tenho problemas, mas nos dias que preciso usar o táxi é complicado. Os motoristas muitas vezes não querem nos levar, alegam que o animal é de grande porte, que não usa focinheira, que são alérgicos a pelos de cachorro. É sempre uma situação constrangedora”, lamenta.
A mesma situação é relatada pelo professor de educação inclusiva da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), o paulista Francisco Lima, 48, erradicado no Recife há 10 anos. O docente, que também tem cegueira congênita, relata que já viveu diversas situações delicadas ao lado de Okra (Quiabo, em inglês), cadela da raça labrador, que tem sete anos e há cinco anos e meio foi doada a Francisco pelo Instituto Iris. “Eu sou do tipo que vou entrando nos locais, não fico esperando que venham falar comigo, mas mesmo assim já fui algumas vezes barrado em supermercados e restaurantes. Mas a pior situação que enfrento é com os taxistas que alegam diversos motivos para não transportar o cão”, conta. “Uma vez, pedi a um amigo que ligasse para solicitar um táxi para mim [mencionando que estava com o cão] e outro para ele. O dele foi encaminhado pela companhia em 15 minutos, enquanto que o meu táxi levou 40 minutos para chegar ao mesmo local e, ainda assim, o taxista se negou a me levar com o animal”, lembra Francisco.
As constantes negativas dos taxistas em transportar a dupla motivaram o professor a procurar o Ministério Público de Pernambuco (MPPE) para mover um processo contra o Sindicato dos Taxistas. O MPPE marcou uma audiência com Francisco, o sindicato e a Polícia Militar, que segundo o professor não tem o ajudado no momento de fazer cumprir a Lei. Durante o encontro, o promotor do MPPE apenas solicitou que o sindicato e a PM cumprissem a Lei, pois alegou que mover uma ação levaria mais tempo.
“Houve essa conversa no final de julho, início de agosto deste ano e de lá pra cá nada mudou. Os taxistas continuam se negando a nos transportar. A Lei determina que havendo descumprimento dela, o MP deve atuar. E atuar significa autuar também. Outro dia estava em uma parada na avenida Caxangá e três taxistas pararam, mas dois deles se negaram a me levar. Não só fui constrangido pela situação como fui ameaçado pelo taxista, que me disse absurdos”, relata Francisco.
De acordo com o Decreto Federal nº 5.904/2006, impedir ou dificultar o ingresso e a permanência do usuário com o cão-guia em ambientes de uso coletivo ou de condicionar tal acesso à separação da dupla geram sanção. A pena se configura em multa no valor mínimo de R$ 1 mil reais e máximo de R$ 30 mil. Se houver reincidência a sanção é a interdição do local, pelo período de trinta dias, e multa no valor mínimo de R$ 1 mil e máximo de R$ 50 mil.