Entre a correria da cidade e a rotina cheia de obrigações, pequenas estruturas de metal abrigam o fruto da renda de quem encontrara no trabalho informal a oportunidade de vencer as dificuldades da vida. Espalhados pelos centros urbanos e bairros residenciais, os fiteiros tornaram-se espaços que guardam memórias e resistem ao tempo.
Alocado em parada de ônibus próxima à Praça do Derby, região central do Recife, o comerciante Manoel Severino, de 59 anos, encara diariamente uma caminhada de 4 km para chegar ao local de trabalho. De pés inchados, encostado em uma cadeira sem conforto, aguarda a chegada de clientes. Os produtos comercializados são comuns: doces; salgados, biscoitos e chocolates. Das populares "miudezas", tira a renda necessária para pagar o aluguel. “Do pouco que ganho sustento a minha vida. Dá para ir levando. Já estou acostumado com essa rotina. Chego no Derby às 8h30 e só fecho às 20h30. Sou um dos últimos a sair. Gosto de chegar em casa tarde e já vou dormir”, conta.
##RECOMENDA##Natural de Cumaru, Agreste de Pernambuco, Manoel não tem família na capital. Depois de ser desligado de uma empresa, foi às ruas trabalhar. Ao total, são 18 anos como ambulante. “Comecei com uma tábua. Depois de muito tempo, conquistei um fiteiro. Ajudou muito a me firmar. Antes era maior o meu fiteiro, tinha luz e conseguia vender mais coisas. Mas a prefeitura resolveu padronizar e perdemos espaço”, relembra. Manoel frisa que antes do sistema de BRT, que corta o Centro do Recife desde 2014, ser inaugurado o movimento era maior. Hoje, depois da retirada de algumas linhas e o aumento de ambulantes informais dentro dos ônibus, as vendas diminuíram.
Seu Manoel acomoda-se em uma cadeira de plástico para encarar as mais de 10 horas diárias de trabalho - Júlio Gomes/LeiaJá Imagens
“Ser ambulante é uma resistência. Temos que lutar para conquistar nosso espaço. Vivemos diariamente uma jornada de trabalho que ultrapassa as horas ‘comuns’ das empresas. Trabalhar para si exige muita preocupação e dedicação. Já me acostumei com tudo isso. Estou levando aos poucos. A idade avançou, mas não é desculpa para não vir trabalhar”, explica Manoel. O comerciante não tem substitutos. Se fica doente, o fiteiro não abre.
Com quase duas décadas no mesmo ponto, ele já construiu uma relação afetiva com vizinhos de fiteiro e clientes. Conhecido pelo nome, a sua figura é marcante para quem passa pelo centro da cidade. “Eu gosto muito do que faço. Não é o ideal, mas estou satisfeito. Espero só o dia em que eu me aposente para voltar à minha terra e ficar com minha família. Preciso manter algo aqui. Com essa idade, não tem empresa que contrate. Então, só esperar em Jesus”, fala. Da simplicidade e fé, deixa uma lição: “o pouco com Deus é muito. Muito sem Deus é nada”.
Ao redor de Seu Manoel, outros 16 fiteiros abrigam histórias de resistência. Charles Barbosa, de 43 anos, cresceu e viu as modificações de perto. Herdou o ofício de comerciante da mãe - que durante 27 anos trabalhou no espaço no qual atua hoje. “Comecei desde cedo. Aos 12 anos ajudava minha mãe aqui no centro. Vi de perto a sua luta em conquistar um espaço para trabalhar. Temos o nosso fiteiro com muito suor”, explica. Ele lembra que antes eram cerca de 30 companheiros de trabalho, mas alega que foram perdendo espaço com as modificações feitas pela gestão da cidade.
Da família, ele é o único que mantém a função da mãe. Charles explica que a necessidade o colocou nessa prática. “Tentei estudar e entrar em faculdade, mas com família, precisamos correr atrás. Tenho três filhos e não posso parar. As contas não esperam. Me sinto feliz em ter esse espaço, enquanto muitos estão desempregados. Dou valor ao que conquistamos”, explica. Ainda segundo o comerciante, o ponto fixo impede a locomoção e implica que o cliente vá até ele ou esteja de passagem por ali.
Charles detalha que a rotina de vendas é exaustiva. “São mais de 13h de trabalho por dia. Chega a ser monótono. Acordo às 3h20, arrumo as coisas e venho trabalhar. Às vezes não tenho energia, mas é preciso seguir em alguns casos até doente”, conta. Entre as maiores dificuldades está manter um ritmo de vendas suficiente para quitar as despesas mensais.
Com o olhar criativo, foi necessário investir em outros produtos, como perfumes, desodorantes e cafezinho para diversificar a oferta. “Além do básico, como pipoca e salgadinho, precisei colocar algumas coisas diferentes. Trabalho agora em cima da quantidade. O movimento caiu muito depois do crescimento de ambulantes nas ruas, sem fiteiros”, detalha. Ele conta que chega a jogar produtos fora quando passam do prazo de validade e não foram vendidos.
Charles oferece diferentes produtos para complementar a renda final de lucro mensal - Foto: Júlio Gomes/LeiaJá Imagens
Quando questionado sobre o futuro, Charles ressalta que não há muito do que esperar. Não faz muitos planos e mantém a esperança e gratidão por ter um espaço. “Apesar de tudo, trabalho para mim. Não preciso bater ponto, mas para o mês valer a pena depende de mim também. O ruim é o calor e fadiga enfrentada diariamente. Mas não sei muito o que esperar do amanhã. Só saúde para continuar a jornada”, salienta.
Presença firme também nos pontos turísticos da cidade
Ainda na região central da capital, o Bairro do Recife é famoso pela arquitetura e ruas históricas. Atualmente, conta com vida noturna oriunda de festas populares e grande movimentação diurna vinda de empresas de diversas áreas. Vinda de uma família de comerciantes, há mais de 40 anos Tereza e seu esposo mantêm um fiteiro na Avenida Marquês de Olinda. Simpática, de riso fácil e cheia de clientes, a comerciante divide com o marido os turnos no estabelecimento.
Juntos viram as mudanças sociais e estéticas do bairro do Recife. Tereza relembra que logo quando montaram o negócio o centro não era bem frequentado por mulheres. “No íncio, eu trazia para meu esposo o almoço e logo voltava para casa. Não podia se ver mulheres aqui que se remetia à antiga fama do bairro [de área de prostituição]. Isso fez com que eu não o ajudasse durante anos. Hoje, com as coisas diferentes eu venho todos os dias no período da manhã para o fiteiro”, explica. O seu companheiro atende durante a tarde.
Dona Tereza trabalha como comerciante em fiteiros há mais de 40 anos junto com o seu mario. Foto: Júlio Gomes/LeiaJá Imagens
O casal é um dos mais antigos da rua. Com os anos de comércio conquistaram casa, carro e educação para os três filhos - hoje, já formados. Tereza fala orgulhosa do período em que deixava o fiteiro aberto sob sua tutela durante todo o dia. O avanço na idade, somando seus 61 anos, diminuiu o fluxo de atendimento. A função foi adquirida através do gosto do esposo, que vem de família de comerciantes. “Ele já tinha essa relação forte com vendas e acabei conquistando. Meu filho também tem mercadinho. É algo que passou de pai para filho”, expõe.
A vontade de conquistar algo próprio aflorou a paixão do casal em montar o negócio. “Não tínhamos outra escolha. Essa foi o que escolhemos. Estamos até hoje. Depois de tantas histórias, poderia até escrever um livro sobre meu fiteiro”, brinca. Tereza não se engana. Ela relembra de uma fase em que o negócio faliu devido a problemas pessoais. Mas, graças ao desenho de um leão, pintado na lataria do fiteiro, um grupo de artistas decidiu comprar a estrutura já enferrujada. “Eu não sei o que eles viram na lata velha que estava. Mas eles ficaram loucos pelo desenho. Fizeram de tudo para comprar. Vendemos. O meu fiteiro foi parar em São Paulo, em exposição. Tenho até hoje as fotos de recordação e livro”, relembra.
Com o dinheiro da venda, compraram um novo e recomeçaram o negócio. Mas, segundo Tereza, o movimento não é a mesma coisa de antes. Com a queda nas vendas, a renda também diminuiu. Saudosista, ela lembra dos tempos em que o fiteiro era um sucesso: ‘Durante esses anos aqui conseguimos viver muita coisa. Era algo muito bom. Meu esposo trocava dólar, tinham muitos navios, turistas, fizemos muitos amigos ‘gringos’”. Mesmo com as dificuldades enfrentadas no dia a dia, Tereza garante que não fecha o fiteiro: “Só saio daqui com uma ordem. Quero deixar isso para meus filhos. Tá no sangue”.
Ela destaca que depois da longa jornada não espera mudar de rumos. A equipe de reportagem do LeiaJá visitou o fiteiro do casal. Esse é o terceiro, o menor de todos - que, de acordo com ela, foi graças ao reajuste implicado pela prefeitura; assista:
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A relação afetuosa entre os clientes e a vendedora proporciona uma conexão para além das dificuldades do dia. “Acordamos cedo. Faço o café. Venho e sigo. A cada venda é uma nova amizade feita. É muito bom trabalhar com o público. Me conhecem pelo nome, me sinto famosa. Em outro emprego não conseguiria, só se fosse atriz”, brinca. Tereza espera que os filhos continuem o negócio dela e diz que, para evitar o ócio, esse é o momento de continuar com o negócio.