Vestir-se é uma das necessidades básicas do ser que convive em sociedade. Cobrir o corpo com roupas, porém, pode não ser algo tão simples quanto parece. O ato de se vestir vem atrelado a muitas outras premissas e construções sociais, que perpassam valores históricos, identitários e econômicos. A esse conjunto de questões e simbolismos podemos dar o nome de moda.
A moda tem espaço e lugar na sociedade, porém, não exatamente como um todo. O tal ato simples de vestir-se ganhou corpo, luxo e vulto nas mãos de grandes estilistas e marcas que, em parceria com o sistema capitalista - instrumento de fomento ao consumo indiscriminado de bens -, o alçou a patamares grandiosos. Sendo assim, o acesso a uma moda de alto padrão ou até mesmo às peças vistas em vitrines, peças publicitárias e produtos audiovisuais, nem sempre está acessível a todos; sobretudo em um país como o Brasil, onde um trabalhador recebe mensalmente, pela sua força de trabalho, o valor de R$ 1.045.
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Para além do aspecto financeiro pertinente a esse universo, outros poréns também acabam corroborando com o estigma de bem inatingível do mundo fashion. Padrões estéticos excludentes também colaboram para que as ditas ‘pessoas comuns’ não se vejam vestindo roupas grifadas.
O artista visual e estilista Cássio Bomfim, diretor geral da marca ACRE, comentou sobre o tema, em entrevista ao LeiaJá. “Tem uma leitura da moda que leva ela pra esse lugar do inacessível, mas tem uma outra leitura de moda que fala de desejo de consumo massivo de um item que é de compra inevitável; porque você pode vestir menos peças que outras pessoas, mas você vai ter o mínimo para um convívio social, e esse mínimo vai ser escolhido num atravessamento que é o seu gosto, o disponível, a sua renda e por aí vai”.
Em seus desfiles, a ACRE tem contado com pessoas 'comuns', não profissionais da moda. Foto: Divulgação
Esse "atravessamento" pode acontecer de várias maneiras. O próprio estilista cita algumas, como a customização de roupas, o ‘faça você mesmo’ - muito visto num ressurgimento recente da moda tie dye -, linhas populares de grandes marcas, e a possibilidade de comprar peças que são, na verdade, cópias daquelas grifadas com preços bem menores. Nas periferias brasileiras, essas estratégias são comuns até que surgem, também, marcas próprias daqueles lugares, como as pernambucanas Máfia Feminina e 24 por 48, feitas por quem vive e entende dos gostos de quem é ‘da quebrada’.
Quando se chega a esse ponto, questões mais subjetivas, porém não menos importantes, passam a ser tão notórias quanto os modelitos e os próprios modelos/manequins. “O corpo que é periférico, aquele que não tem intenção de escolarizar-se ou aperfeiçoar-se, ou não vai rolar nessa vida de ele ter acesso a isso, por que não esse homem ou essa mulher, esses corpos não demonstrarem suas belezas também?”, questiona Cássio.
É aí que entra o conceito da representatividade, algo com o qual a ACRE tem lidado há bastante tempo, promovendo desfiles com pessoas ‘comuns’ - leia-se não profissionais da moda -, e em bairros periféricos do Recife, a exemplo do que aconteceu no lançamento da última coleção da marca: “Árido Surf, cap. 2, a Festa". “O lance da escolha das periferias se trata de uma provocação, um comentário sobre o que é parte do ativismo afro-indígena brasileiro. É muito pensando numa reversão do estigma da ‘perifa’ como esse lugar de periculosidade onde não se pode filmar, tem todo esse folclore. Isso tem um impacto em outras pessoas numa identificação que eu sinto ser diferente das percepções de desfiles mais formais. Algumas são até emocionantes de pessoas que falam que era o'desfile que sempre sonhou em ver’”, diz o estilista.
Sobre representatividade e ativismo, a modelo, assistente social e Mestre em Políticas Sociais pela Universidade de Berlim, na Alemanha, Domitila Barros, entende bem. Descoberta na comunidade da Linha do Tiro, Zona Norte do Recife, a pernambucana desde pequena já era engajada com trabalhos sociais, através da ONG CAMM (Centro de Atendimento à Meninas e Meninos), que oferecia atividades de lazer e educação para os jovens do local. Hoje, ela é embaixadora mundial da marca Symrise Cosmetics Ingredients, que tem foco na responsabilidade ambiental e sustentabilidade.
Domitila Barros foi descoberta na comunidade da Linha do Tiro, Zona Norte do Recife. Foto: Divulgação
Domitila entende a moda como uma ferramenta de inclusão e transformação social e usa o seu próprio exemplo de vida para ilustrar isso. “Eu creio que a internet e as mídias sociais são uma oportunidade enorme para (profissionais) serem descobertos. Eu acompanho virtualmente artistas e estilistas de várias comunidades; por exemplo no universo do brega funk ,as cores, tendências e designs têm sido inspiração nacional e com muito mérito e qualidade. Os figurinos, as tendências das comunidades estão ganhando, criando e fundindo novas formas de consumo, de criar e de fazer moda, arte, cultura, música... Eu sou uma fiel embaixadora de que a favela também pode, e que mais importante do que de onde a gente vem é aonde a gente quer chegar”.
Pela fala da modelo pernambucana é possível entender que, atualmente, não basta subir na passarela ostentando apenas um look de impacto, é preciso mais: “protagonismo, sororidade, solidariedade”, temas que, como ela observa, são “atuais e gritantes mundialmente”.
A modelo acredita, também, na democratização da moda, a partir desses pilares e de alguns outros como oportunização e abertura de mercado de trabalho e financiamento. “Conheço designers talentosíssimos no Recife e em vários lugares do Brasil e do mundo que não adquirem o reconhecimento e valorização adequados devido ao fato do ingresso no mundo da moda ser tão restrito e limitado. Creio que é necessário diversidade para alcançarmos a democracia. A minha maior motivação é a possibilidade de atuar como uma multiplicadora e eu acredito que dividindo a minha história de vida e trajetória posso inspirar e motivar outros jovens e gerações a resilientemente e com orgulho dos seus valores e origem superar barreiras”.