De tênis alinhado, calça skinny e camisa estampada, o Mestre Anderson Miguel contempla as fronteiras do horizonte do Engenho Cumbe, em Nazaré da Mata, na Mata Norte de Pernambuco, em busca de inspiração para improvisar uma nova loa. “Quando dá, eu ando com umas coisas prontas, mas verso na hora às vezes sai até melhor do que verso decorado”, comenta o jovem líder do Maracatu Rural Cambinda Brasileira, uma das mais tradicionais nações de baque solto do estado. Aos 22 anos, Anderson samba no improviso para vencer a passagem do tempo com sua Cambinda, que se prepara para completar cem anos de existência no Carnaval de 2018, sem apoio do estado ou de grandes empresas.
Nascido e criado no Engenho Cumbe, Anderson é filho do contramestre Aderito Amaro e da baiana Eugênia da Silva. “Um matuto. Minha mãe saiu no carnaval em 1995 comigo dentro da barriga, mas vim começar mesmo com 12 anos, como mestre do Maracatu Infantil Sonho de Criança. Aos 15, entrei no Maracatu Águia Misteriosa e em 2013 assumi a Cambinda”, conta. Sucessor do mestre Canário Voador, Anderson mantém os pés no chão. “Todo ano é difícil colocar o maracatu na rua. Neste, além do carnaval, temos os gastos da comemoração do nosso centenário. Mesmo com apoio da prefeitura, falta muita coisa. A gente organiza rifa, pede aos amigos, mas por que tanta gente que pode nos apoiar não apoia?”, questiona.
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Se em Nazaré a escassez de patrocinadores é ingrata, fora de sua terra natal, o “Neymar do Maracatu”- conforme Anderson gosta de se denominar-, ganhou projeção nacional devido à parceria com o instrumentista pernambucano Siba Veloso, a quem costumeiramente se refere como “mais do que um padrinho” e deve o trabalho de produção em casas de grande porte e visibilidade, a exemplo do paulistano Sesc Pompeia. “Eu não sei a dimensão do que está acontecendo. Eu já escutava Siba cantar, mas nunca imaginei poder chegar perto dele, apertar a mão, dar um abraço”, completa.
Embora não abra mão de símbolos tradicionais no Maracatu de Baque Solto, como a bengala da qual não se desgruda, Anderson pode inaugurar uma geração de mestres que aborda, em suas poesias, temáticas não necessariamente ligadas ao passado ou à vida rural. “Política, natureza e violência. Eu não sou polêmico, talvez eu cante o que muitos querem e outros não. Tenho um mote em que digo: o Brasil que vivemos tá perdido/dominado pela corrupção/Não posso aceitar nem posso ver/ um país onde o povo tá sofrendo/Essas brigas que estão acontecendo/iludindo a cabeça da nação”, lembra.
Com apenas 22 anos, Anderson Miguel comandará novamente os 180 'fogazões' da Cambinda Brasileira no carnaval de 2018. (Rafael Bandeira/LeiaJá Imagens)
Barachinha, Dedinha, Zé Galdino dentre outros mestres figuram entre as influências de Anderson, mas não são as únicas. Ele é o mestre de maracatu que não abre mão de dar uma “palhinha” no barzinho em shows de amigos, já teve música autoral gravada pela banda de forró Calango Aceso e faz bom uso das redes sociais e da internet para divulgar novos trabalhos. “Gosto muito das músicas antigas dos Nonatos. Penso gravar um CD interpretando músicas deles para ouvir em casa com os amigos. De 2014 para cá, comecei a compor também para sair um pouco da rotina do Maracatu e soltar registros no Youtube, o pessoal gosta bastante”, explica.
“É preciso desfolclorizar a cultura popular”
Residente do Bairro do Monte, em Olinda, Marcelo Cavalcante insere elementos de jazz e de ritmos africanos em seu frevo. (Rafael Bandeira/LeiaJá Imagens)
Violonista, compositor e intérprete, Marcelo Cavalcante sabia o que lhe esperava quando largou o conforto do lar familiar para viver exclusivamente de música. “Tive o privilégio de escolher ser pobre”, costuma dizer ele, que, há quatro anos, mora em um pequeno conjugado no Bairro do Monte, em Olinda. Noturno, Marcelo colhe suas melodias e frevos da madrugada e logo lhes transpõe para um charmoso violão Antonio Hernandez, que só por implicância com o nome que carrega, soa bastante brasileiro. “Venho da escola do jazz e da bossa nova e trago muito disso para o frevo. Também sou muito ligado aos ritmos de matriz africana. Tudo isso acaba criando uma linguagem moderna para o gênero”, comenta.
Não é por acaso que, dos compositores do frevo, Capiba é o mais ouvido por Marcelo. “Ele foi letrista e compositor. Assim como Capiba, trabalho com vários estilos, como maracatu e samba canção. E o caixa do frevo vem tem uma quebrada seis por oito, de candomblé. Ganhei muita experiência tocando com os mestres de coco de Olinda, uma vivência real com nossos ritmos”, lembra o artista, que chegou a integrar a banda de Dona Glorinha do Coco, como pandeirista.
Compositor aponta Capiba como influência profícua. (Rafael Bandeira/ LeiaJá Imagens)
O produto desse caldeirão de influências é o que Marcelo vê como um frevo “ácido”. “Existe uma certa crítica à forma como a sociedade se organiza. Muita gente que compõe frevo atualmente o faz em torno desse apelo ao calor, à bebida, ao beijo, que remetem ao nosso carnaval. Procuro a poesia que vai além da festa”, afirma.
Na contramão do mercado e da gestão cultural do estado, Marcelo escolhe tocar frevo o ano todo, o que já lhe rendeu, entre amigos próximos, o apelido de ‘veinho’. “Velho é o estigma de tratar tudo que é nosso como ultrapassado, como expressões sazonais, coisa de época. É preciso desfolclorizar a cultura popular. O frevo tem que ser associado ao cotidiano das pessoas, com mais festivais, mais espaços dedicados a ele e mais patrocínio para trabalhos novos”, critica.
O ‘coco pop’ do Mulungu
Mulungu tem coco como ritmo base, mas se utiliza de elementos do ijexá e do Maracatu. (Chico Peixoto/LeiaJá Imagens)
Cravado nas regiões centrais do nordeste, o alaranjado do Mulungu é capaz de muito mais do que embelezar as paisagens sisudas do sertão. Conhecida como “amansa-senhor” e “capa-homem”, a árvore possui propriedades capazes de auxiliar quem sofre de males como insônia, ansiedade e depressão. Não é a toa que, no bairro da Várzea, marcado pelas extensas áreas verdes e por ser itinerário do Rio Capibaribe, brotou o grupo Mulungu, composto exclusivamente por percussionistas mulheres, interessadas em difundir gêneros como o coco, o maracatu e o ijexá.
Desafiando a cultura tradicional dos tambores, que sempre legou aos homens o papel de senhores de instrumentos pesados, a exemplo de ilus, congas e atabaques, o projeto começou quando Karollayne Nicolly e Vanessa Farias desistiram de trabalhar com os rapazes de um outro grupo. “Por conta do machismo deles. A gente se juntou pra fazer um grupo só de mulher, porque mulher na Várzea não tinha vez. Apesar de tudo que a gente vem enfrentando aqui, já realizamos nossa terceira sambada”, comemora Karollayne.
Grupo inova ao acrescentar instrumentos harmônicos, como o violão e a flauta transversa, ao coco. (Chico Peixoto/LeiaJá Imagens)
Encarando olhares masculinos curiosos, o grupo, cuja atual formação conta também com Ariana Luna, Edilma Cavalcante, Andreza Santos e Evellyn Monaliza, costuma se reunir na praça da Várzea para ensaiar e realizar apresentações. “Começamos a estudar os instrumentos mais pesados, que não tínhamos oportunidade de tocar. Muitas vezes em que a gente começava a pegar, um homem tomava nossa frente”, lembra Karollayne.
Autoral, o Mulungu executa como uma espécie de ‘coco pop’, as composições elaboradas por Karollayne e Vanessa. “A gente olha ao redor e, de repente, a melodia vem. As músicas têm muito a ver com nossa vivência na Várzea”, comenta Vanessa. As melodias simples conquistaram um público jovem e fiel, que sempre comparece nos eventos organizados pelo próprio Mulungu. “Há uma renovação de público também. Utilizamos instrumentos comuns do coco, mas resolvemos acrescentar instrumentos harmônicos, como o violão, a flauta transversa e percebemos que as pessoas vem aderindo e se identificando com essas inovações”, conclui Karollayne.
Confira as melhores fotos do ensaio dos novos artistas para o LeiaJá na galeria de imagens:
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