Crianças venezuelanas ganham brinquedos em ação no Recife
Ação conjunta de entidades locais promoveu um Dia das Crianças responsável ao povo indígena Waraos
O sábado (31) foi de celebração para as crianças venezuelanas da etnia indígena Waraos, refugiadas com as suas famílias no centro do Recife desde 2019. Em campanha conjunta da Cáritas Brasileira NE2, em parceria com a Rede De Amor, Fraternidade e Amizade (Projeto RAFA), foram entregues mais de 150 brinquedos aos pequenos refugiados, que apesar da pandemia da Covid-19, não passaram o Dia das Crianças em branco.
A ação solidária “Doe e faça uma criança feliz” foi organizada pelas entidades locais, e tem o objetivo de sensibilizar a população para a presença e necessidades do povo venezuelano que vem ao Recife. Tudo ocorreu seguindo as orientações e protocolos de segurança contra a Covid-19.
Os presentes foram entregues a aproximadamente 150 crianças, de até 12 anos de idade, em dois momentos distintos. Pela manhã, a ação foi das 9h às 11h, e ocorreu nas casas do povo Waraos, nos bairros de Santo Amaro e Coelhos, no Centro. À tarde, o ponto de distribuição dos presentes foi na área externa da Casa de Direitos, no Bloco E da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap), das 14h às 17h. Ao fim da visita na primeira residência, o ancião António Calderón, de 60 anos, chamou a atenção dos convidados e pediu para cantar um canto ancestral sagrado do povo Waraos, em agradecimento à presença de todos.
Segundo Calderón, “essa música só se canta em momentos muito especiais e alegres, e nós somos um povo festivo”. O idoso utilizou um instrumento típico chamado “Jabisanuka”, espécie de chocalho, como apoio.
As crianças Warao ainda não sabem dialogar em português, e usam do espanhol sob o próprio dialeto indígena, mas foram responsivas à presença das equipes. Alegres, receberam os presentes sem timidez, brincaram e pediram atenção nas fotos e vídeos.
O Projeto RAFA propõe iniciativas voltadas aos venezuelanos e dá suporte às famílias imigrantes, com foco no empreendedorismo, investimento e reconhecimento de talentos dessas pessoas. Segundo o idealizador do projeto, Luiz Marcos Nascimento, até agora, seis pequenos empreendedores já foram ajudados financeiramente e com consultoria para levar os seus projetos adiante. Já a Cáritas possui um programa de migração e refúgio, que assessora as famílias e realiza a sua acolhida direta, conectando-as com as entidades do direito civil no Estado, situando e conscientizando os Waraos. Ambos atuam de forma independente, mas estabelecem comunicação com órgãos estaduais, com a Prefeitura do Recife e com o Ministério Público de Pernambuco, para conseguir realizar um melhor monitoramento da movimentação desses imigrantes.
Ao todo, cerca de 20 famílias são assessoradas. O educador social da Cáritas e ponte de comunicação entre os grupos assessores e os Waraos é um imigrante venezuelano, no Brasil há aproximadamente três anos. Davi Ramos, quando perguntado pelo LeiaJá sobre o monitoramento dos casos da Covid-19 entre o povo indígena, explicou que a capacidade de rastrear o vírus nessa comunidade é muito baixa. “Sei que houve uma morte confirmada, de um senhor de 60 anos, pai de uma mulher Warao na comunidade do Recife. Isso ocorreu há quatro meses, mas é difícil saber se houve mais mortes. A Prefeitura do Recife testou todos os cidadãos venezuelanos sob nossa assessoria, e ao menos quanto à confirmação de casos, ainda não temos positivos”, disse.
Ainda segundo o educador, o povo Waraos está em movimento de diáspora há quase 20 anos. Eles são parte do povo ribeirinho originário de Delta Amacuro, às margens do Rio Amacuro, próximo à fronteira da Venezuela com a Guiana. Apesar da influência da situação socioeconômica na Venezuela, a exploração ilegal e contaminação das terras indígenas, principalmente as ribeirinhas, têm forçado essas famílias a buscar novos lares. Waraos tentam se realocar em um Recife “próspero”.
O educador social Davi Ramos explica que o povo indígena tem chegado ao Brasil de forma independente, e não foi diferente com os imigrantes no Recife. A maioria está na cidade desde outubro de 2019 ou chegou mais recentemente. “Eles chegaram sozinhos, por conta própria. Faz parte da missão da Cáritas ajudar os mais vulneráveis, então, nós, juntos ao Projeto RAFA, e com o Comitê de Imigrantes e instituições do estado, realizamos o acolhimento dessas pessoas. O Nordeste tem visto muito dessas migrações, principalmente Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Alagoas”, contou o venezuelano.
José Lizardo Moraleda é líder da família que reside em Santo Amaro. Está no Brasil há um ano, mas em Recife, é recém chegado e acaba de completar um mês na cidade. Ele contou que chegou ao Brasil com o apoio das autoridades, e precisou ficar em uma casa de apoio em Pacaraima, na divisa entre Roraima e Venezuela. Apesar de enxergar o Recife como um lugar “próspero”, tem vontade de voltar ao próprio país. “Não vim para cá definitivamente. Tenho vontade de voltar à Venezuela, apesar da situação, sinto falta da minha terra, da agricultura. Somos uma família que sempre trabalhou, e queremos trabalhar, mas no meu país não está acontecendo trabalho. A situação está muito difícil e caótica, e o custo é muito alto. Sinto falta da minha família, e penso em voltar para lá no próximo ano, apesar de tudo”, disse o chefe de família.
Para António Rafael, morador do bairro dos Coelhos, a perspectiva já é outra. De origem rural, na Venezuela, vivia de agricultura ao lado da esposa Irma Ribeiro, uma Warao. O “criollo”, como são chamados os não-indígenas, relata que foi vítima de roubos na sua propriedade no país natal e que, pela situação de vulnerabilidade, o crime é uma opção para muitas pessoas. “Na Venezuela, o custo de tudo é muito alto. Em alguns lugares, cobram as coisas em dólar americano. Quinze dólares um pacote com carne, 10 dólares um fertilizante para a minha terra. Como um indígena pobre, como eu, vai conseguir esse dinheiro para sobreviver? Graças a Deus, aqui em Recife, não passamos fome. Conseguimos comer e temos um lugar para ficar. Espero que surjam oportunidades de trabalho, pois não penso em voltar”, revelou o agricultor.
O depoimento se repetiu conforme os venezuelanos eram ouvidos. A família vizinha de António vive em uma situação ainda mais vulnerável. Com um banheiro e um quarto para sete pessoas, das quais cinco são crianças, os Morales ainda não conseguiram se estabelecer no Estado, e têm recorrido às ruas. Bicui, pai da família, pede por ajuda e diz que tem pedido dinheiro junto aos filhos. “Junto cada R$ 50 e vou comprando o que dá para comer no dia. Os vizinhos ajudam, o meu sobrinho, o meu cunhado. Todo mundo junta o que pede e compra algo para comer. Tenho cinco crianças aqui, então dou atenção ao que precisamos mais. Um leite, pão, frango… Tudo é muito caro para nós. Precisamos muito de ajuda, de trabalho. Quero ter uma ferramenta para trabalhar. Sinto saudade da minha mãe, do meu pai, que ficaram lá, mas eu preciso continuar aqui”, desabafou.
A família Morales ainda não é assessorada pelo Cáritas, nem pelo Projeto RAFA. Eles chegaram recentemente à cidade, e se comunicam com a família estrangeira pelo telefone de uma vizinha, que os dá apoio. As entidades pegaram o contato dos residentes para seguir o procedimento de acolhida.