Tome-se um exemplo concreto no plano interno do direito dogmático, em que fica mais claro o problema filosófico da tortura, posto que se excluem justificativas relacionadas ao terrorismo; trata-se de caso verídico, ocorrido há quase uma década na Alemanha. Em setembro de 2002 o filho de 11 anos de um banqueiro de Frankfurt foi sequestrado. O sequestrador foi preso pela polícia, mas não queria dizer onde prendera o menino. Depois que o chefe de polícia o ameaçou de tortura, apenas o ameaçou, ele revelou o local. Era tarde demais e o menino foi encontrado morto de fome e sede. A promotoria acusou o chefe de polícia com base na legislação alemã em vigor, que proíbe rigorosamente a tortura ou sua simples ameaça. O tribunal recebeu a denúncia e não o absolveu, mas aplicou-lhe a mais leve das penas, sob alegação das finalidades éticas da ameaça, apesar de manifestamente ilegal. E em 2011 o condenado recebeu uma indenização do Estado.
Mas podem-se imaginar casos ainda mais dramáticos, roteiros de filmes, um indivíduo que é preso e confessa espontaneamente que colocou uma bomba poderosa em algum lugar da cidade, cuja explosão causará a morte de milhares de inocentes. Pouco importa se seus motivos são políticos ou simples extorsão. Pois bem: justifica-se eticamente torturá-lo? No caso do garoto alemão, segundo pesquisa feita logo depois, na esteira do debate que moveu a nação, dois terços dos alemães eram a favor da atitude da polícia (interessante que a quase totalidade dos profissionais do direito mantinha a opinião contrária, pela proibição absoluta).
A questão, como dito no início, toca num tabu da ética democrática e, sobretudo na Alemanha, invoca ainda a questão nazista, regime que legalizou e aplicou largamente a tortura, justificando-a também por sua eficiência. No Brasil, a ditadura relativamente recente também agrava a discussão, sempre atual devido à constituição da chamada “Comissão da Verdade” pelo Governo Federal e às sugestões recorrentes pela anulação da Lei de Anistia.
Mas ainda assim, o argumento da eficiência é questionável em diversos casos. Muitas pessoas dirão qualquer coisa sob tortura. Há também o problema da ignorância, pois o torturado pode não ter a informação que se deseja e parecer ao torturador ter uma vontade férrea que precisa de mais tortura para ser dobrada.
A questão põe-se mais claramente, porém, como no caso alemão, se há certeza de que o cativo detém a informação requerida, a qual supostamente possibilitará salvar bens jurídicos tão ou mais importantes do que seu direito a não ser torturado. Daí começam a surgir argumentos que atacam os próprios fundamentos dessa proibição básica no Estado de direito.
Do outro lado da controvérsia, advogando a negação absoluta da tortura, alega-se que o direito não pode ser combatido com o não-direito, que à polícia cabe institucionalmente prevenir perigos e proteger a população, não castigar criminosos, que é função dos sistemas judiciário e penitenciário, e que essa proteção policial deve ser feita de forma moderada e com bom senso.
O fato é que há muitos belos discursos, mas a civilização ocidental ainda está longe de uma cultura de inclusão universal que tornaria um fenômeno primitivo como a tortura apenas uma lembrança histórica. Infelizmente.