O romance de Contardo Calligaris, A mulher de vermelho e branco (Companhia das Letras, R$ 39,00, 208 págs.), é desses lançamentos que recebem expressiva atenção da mídia e dos eventos literários. Amanhã, por exemplo, ele estará na mesa que encerra o 9º Festival Recifense de Literatura. Como tem acontecido quase sempre, a intriga e as qualidades ou defeitos do livro não serão pauta principal. O fato de Contardo ser psicanalista provoca indagações sobre as fronteiras entre ficção e realidade, invenção e memória, loucura e sanidade etc. Basta uma rápida pesquisa para descobrir como o autor tem respondido exaustivamente questões em torno desses temas.
Assim como ocorre na coluna Redor da Prosa, onde as obras muitas vezes parecem meros ganchos, esses desvios não significam que os livros e a literatura sofram prejuízo. Pelo contrário, são reflexões que podem muito bem estimular a leitura, suscitar outras discussões, além do que seria possível apenas com críticas que beiram o relatório – cartas de navegação que têm sua importância, mas não precisam se transformar em rotas inescapáveis.
Contardo retorna com Carlo Antonini, personagem psicanalista de seu primeiro romance, O conto de amor (2008). Agora, o narrador faz parte de um enredo que mistura trama policial, dramas familiares, especulações filosóficas e, entre tantos outros, existem ensinamentos. O protagonista, que obviamente possui laços estreitos com o próprio autor, não se omite, tenta ajudar sua paciente, ainda que desconfie sempre que sua sabedoria não é infalível, que suas tentativas de fazer o bem podem facilmente levar ao mal.
No final do romance, por exemplo, ao saber do destino trágico de um de seus personagens, o narrador assume que sua participação na trajetória do mesmo, através de um texto, de um relatório, pode ter sido determinante, de modos bem díspares. Ele não sabe dizer qual seu peso ou lado nessa balança.
O século XX assistiu a duas correntes, reverberadas e aparentemente antagônicas: de um lado, tudo em nosso redor acabou preenchido de narrativas, incontáveis, nossas próprias concepções de mundo sendo devedoras dessas narrativas; na outra margem, o narrador morreu ou, pelo menos, entrou em estado terminal. E muitos teóricos trabalharam sobre os dois alicerces, que não são incompatíveis, absolutamente.
Quando Walter Benjamin escreveu o clássico ensaio O narrador: considerações sobre a obra de Nicolai Leskov, em 1936, apontando algo em extinção, ele se referia aos indícios da morte de um tipo de narração específico, aquele onde são passadas experiências exemplares, ensinamentos. Ou seja, o conceito de narrador implicado está ligado a uma funcionalidade:
“Essa utilidade pode consistir seja num ensinamento moral, seja numa sugestão prática, seja num provérbio ou numa norma da vida – de qualquer maneira, o narrador é um homem que sabe dar conselhos. Mas, se ‘dar conselhos’ parece hoje antiquado, é porque as experiências estão deixando de ser comunicáveis”.
Em seu lugar, para Silviano Santiago (em Nas malhas da letra, 2000), surgiu um narrador que deseja “extrair a si da ação narrada, em atitude semelhante à de um repórter ou de um espectador. Ele narra a ação enquanto espetáculo a que assiste (literalmente ou não) da platéia, da arquibancada ou de uma poltrona na sala de estar ou na biblioteca; ele não narra enquanto atuante”.
Equívoco geralmente vem das sentenças, dos anúncios prematuros de morte. O narrador não morreu, tampouco o autor, a narrativa, o romance, os gêneros literários. Mas tudo mudou, está em movimento, e ainda lidará com outras infindáveis transformações. A literatura, como qualquer outro discurso, é um fenômeno lingüístico vivo, dinâmico, daí deriva sua universalidade e permanência.
Vários autores, em tantas línguas, têm levado aos leitores seus mortos que narram e ensinam, assim como seus velhos, gurus, monstros e outros muitos narradores que oferecem supostas sabedorias, com resultados não menos diversos (dentro e fora da narrativa). Suas vozes, no entanto, não passaram incólumes pelos debates literários e demandas sociais contemporâneas.
O Antonini de A mulher de vermelho e branco participa e tenta ajudar com seus aprendizados, porém, cônscio das incertezas que acompanham seu trabalho e da inconfiabilidade da narrativa que desenvolve. E seu tom não é professoral, pedagógico, suas sugestões são dadas de maneira que fica nítida sua falibilidade, a possibilidade de estar errado, de que suas palavras possam não conter alguma das solução. Como ele poderia ter certeza de algo, se trabalha com as memórias e impressões, se ele “entra na história do paciente”? Se, portanto, lida com ficções. Em entrevistas, Contardo Calligaris insiste que “a história que a gente se conta como se fosse nossa é, em geral, apenas a ficção na qual preferimos acreditar”.
Toda narrativa é uma refiguração da realidade que afirmamos observar e tomar como inspiração. E, mesmo se negamos algum real como ponto de partida, sempre construímos nossas histórias a partir das narrativas que nos rodeiam e/ou engendram. Somente através das narrativas nós conseguimos dar totalidade às coisas, compreender o mundo. Selecionamos, montamos, relacionamos causas e efeitos, fazemos as sínteses sem as quais nosso universo seria ininteligível. Decorre que o narrado é uma refiguração, realidade erigida sobre terrenos que também são devedores de outras referências, em infinito jogo de espelhos.
A força da narrativa de ficção – e muito especialmente no gênero romance – reside na sua maior autonomia. É permitido ao ficcionista todo um repertório e jogos temporais que são vetados ao discurso histórico, ao científico, ao filosófico etc. Como explica Ricoeur, “não que a narrativa histórica seja extremamente pobre a esse respeito. (...) Tudo se passa como se a ficção, criando mundos imaginários, abrisse à manifestação do tempo uma carreira ilimitada” (Tempo e Narrativa).
Entre uma mulher de vermelho e branco, crimes, afetos, previsões de mortes, narrativas, ficções e tantas outras calhas que giram o que entendemos por humano, há autores como Contardo Calligaris e narradores como Carlo Antonini, que não rejeitam oportunidades de refletir sobre as possibilidades e conseqüências das histórias que criamos ou, como leitores, fazemos seguir em eterno nascimento.