Capela do Hospital Papa Giovanni XXIII, em Bergamo, epicentro da pandemia do novo coronavírus (Sars-CoV-2). Um veterano padre se depara com seis caixões, um deles com um número de telefone. A esposa, impossibilitada de velar o marido por causa do confinamento imposto pelo governo da Itália, queria que o sacerdote lhe telefonasse para uma última oração antes do sepultamento.
"Disseram-me: 'Telefone para essa pessoa, ela não tem como estar presente e queria que você, antes de sepultá-lo, fizesse uma bênção'. Um assistente do hospital ligou para a família, e eu rezei o Pai Nosso com eles", conta o frei Aquilino Apassiti, que, aos 84 anos, já viu muita coisa nesta vida, mas nada como as cenas de tristeza provocadas pela pandemia em Bergamo.
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Essa província de 1,1 milhão de habitantes é a mais atingida pelo novo coronavírus na Itália, com 6.471 contágios e um número incerto de mortes, já que a Defesa Civil divulga apenas a quantidade de óbitos por região. O próprio prefeito da cidade de Bergamo, Giorgio Gori, admite que muitos idosos morreram em casa ou asilos e escaparam às estatísticas.
Se fosse um país, a província seria líder em número de casos em termos proporcionais, com 580 para cada 100 mil habitantes, mais de cinco vezes a média da Itália (101/100 mil hab.). Fotos de caminhões militares em fila para transferir corpos dos sobrecarregados crematórios bergamascos para outras regiões italianas rodaram o mundo e ilustraram o drama de uma província que sequer consegue sepultar seus mortos.
E quando consegue, é na ausência da família, impedida de sair de casa para o adeus definitivo. Os funerais estão proibidos em toda a Itália desde 8 de março, como forma de evitar que cerimônias de despedida acabem levando outras pessoas ao descanso eterno.
"Era um homem que a esposa havia levado ao hospital três ou quatro dias antes. Quando recebeu a notícia do falecimento, deixou esse número para ligarmos para ela. Rezei o Pai Nosso, e foi marcante para mim. Já estou acostumado a essa romaria em casas mortuárias, sempre tem parentes, flores, um nome, mas agora não há nada", conta frei Aquilino à ANSA, em seu português aprendido durante os anos como missionário no Pará e no Maranhão.
"Nunca experimentei algo assim", acrescenta. E quem diz é um padre que, em 1944, ainda criança, viu um bombardeio matar mais de 270 pessoas em sua cidade natal, Dalmine, na província de Bergamo, quando as forças aliadas avançavam pelo norte da Itália para derrubar o nazifascismo. Quem diz é um sacerdote acostumado à dura realidade dos hospitais e a acompanhar pacientes para hemodiálises, quimioterapias, transfusões.
"Certa vez, entrei na câmara mortuária e parecia uma coisa de guerra. Ver os corpos sobre a mesa anatômica… Eram quase 25 pessoas em um único dia", relata frei Aquilino, descrevendo uma dor ampliada pela solidão na hora da morte. "É a parte mais dura de um momento terrível, porque os parentes não podem estar presentes." Brasil - Hoje a situação em Bergamo, embora crítica, parece dar sinais de desaceleração: em 22 e 23 de março, a província teve crescimento de 5,9% e 4,1%, respectivamente, nos contágios pelo novo coronavírus, contra uma média de 12,6% nos 10 dias anteriores.
Frei Aquilino, no entanto, não pode mais dar conforto aos fiéis: após um superior contrair o Sars-CoV-2, o padre foi colocado em quarentena com outros sacerdotes na última quarta-feira (18).
Mas, mesmo isolado, tenta alertar os brasileiros para o perigo do novo coronavírus. "O isolamento é sagrado, a única maneira de nos livrar desse perigo. Tratar esse momento com superficialidade é brincar com a vida", diz o padre, em um alerta para o país que foi sua casa por mais de duas décadas e ainda enfrenta o estágio inicial da pandemia, com cerca de 2 mil casos e mais de 30 mortes.
O italiano atuou como missionário no Maranhão e no Pará entre 1989 e 2013 e acreditava que viveria no Brasil até o fim de seus dias, mas voltou para casa para acompanhar um colega que faria hemodiálise. Logo após o retorno, foi diagnosticado com câncer no pâncreas e, depois de uma cirurgia, ouviu de um médico que tinha de seis meses a um ano de vida. "E aqui estou, trabalhando", diz o padre, seis anos mais tarde.
Agora, em isolamento obrigatório e sem poder ajudar os pacientes do novo coronavírus, frei Aquilino espera que os sacrifícios gerados pela pandemia não sejam em vão. "É um momento epocal. Se isso não mudar nosso coração, terá sido tempo perdido."
Da Ansa