O amontoado de papéis colados nas paredes traduz em letras recém-aprendidas desejos inocentes. Bolas, bonecas, videogames e carrinhos são alguns dos pedidos feitos ao Papai Noel dos Correios, no Centro do Recife. Ali, no meio das milhares de cartas enviadas ao projeto social que presenteia crianças em situação de vulnerabilidade, um papel destoa. O esforço de uma caligrafia e o colorido da folha passariam despercebidos aos olhares menos atentos, mas o pedido contido nela tem um teor bem diferente: Shirley de Melo, de 51 anos, quer de presente de Natal um emprego.
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“Bom dia senhores dos Correios ou de outras empresas: meu nome é Shirley de Melo tenho 51 anos e moro em Peixinhos. É o seguinte; eu sei que vocês presenteiam crianças, mas mesmo assim eu me veio o interesse de escrever para pedir ajuda. Mais eu não venho pedir dinheiro roupa sapato nem tão pouco brinquedo, eu preciso de um emprego gente, pois estou desempregada a quase 5 anos e já estou cansada de colocar currículo e nada minha gente. Eu tenho o 2º grau completo só não tenho experiência na carteira mas sei fazer de tudo um pouco, sou também diarista, folguista e faço outros serviços”.
A autora da carta mora a oito quilômetros do imponente prédio no qual depositou sua esperança. No bairro de Peixinhos, em Olinda, Região Metropolitana do Recife, leva uma vida ainda mais simples do que o brasileiro com renda média é capaz de imaginar. O benefício recebido pelo Bolsa Família é totalmente voltado para sua alimentação. Para conseguir pagar R$ 130 de aluguel mensal, vende mungunzá aos domingos pelas ruas da cidade. A rotina é puxada. Acorda junto com o sol. Liga o fogo enquanto prepara o carrinho de mão a ser arrastado ao longo do dia. Sai de casa às seis. Só volta quando tudo acaba. Anda o quanto for necessário pelos bairros da cidade até achar compradores cada vez mais escassos. “O movimento foi caindo porque o pessoal foi ficando sem dinheiro. Já ouvi gente dizer que não dava três reais no mungunzá porque precisava dar três reais no pão”, recorda.
A ideia de escrever o pedido foi tomada de supetão quando ela viu uma reportagem com a ação dos Correios na televisão. “As crianças diziam o que queriam, uma bicicleta, uma barbie, ai eu pensei ‘Sabe de uma coisa? vou escrever uma carta e seja o que Deus quiser’”, conta. Pegou o caderno, a caneta e reescreveu o pedido três vezes. Aproveitou uma ida ao Centro do Recife para colar o pedido junto ao das crianças. “Quando cheguei lá ainda fiquei me tremendo, pensando se ia botar ou não”, lembra. Decidiu por colocar e esperar ansiosamente uma resposta ou ao menos um convite de entrevista. Nenhum dos dois chegou até o momento.
Shirley na porta de sua casa, no bairro de Peixinhos, em Olinda / Foto: Júlio Gomes/LeiaJáImagens
O último dia oficial de carteira assinada de Shirley a leva de volta para as festas natalinas: 26 de dezembro de 2013. Enquanto ia para escola com seus tardios 46 anos em busca da educação básica nunca conquistada na infância, trabalhava na casa de uma família e guardava a vontade de um futuro melhor em recortes de jornais. “Via as vagas das firmas e cortava tudinho. Pensava ‘vou botar o currículo para terminar meus estudos’”, conta.
Queria entrar em um curso técnico de enfermagem para atender aos mais necessitados, mas uma mudança proposta pelos patrões no horário da então empregada doméstica a motivou a pedir demissão. Perdeu o emprego e só restou a esperança. Enviou currículos para todas aquelas firmas recortadas e mesmo com o tão desejado segundo grau completo, conquistado após quatro anos de aulas noturnas, nunca foi chamada. Nem ao menos para uma conversa. Se o dinheiro não vinha, o jeito era se adequar. Saiu do quarto no qual morava e procurou um espaço mais barato para viver.
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Hoje, entre as paredes sem reboco de dois cômodos, ela coleciona valiosos presentes. Uma televisão dada pelo irmão, uma geladeira presenteada por outro, o retrato da mãe em uma parede. A mulher, que morreu de tuberculose quando Shirley tinha apenas 13 anos, era analfabeta e teve outros oito filhos. Em meio a uma vida de pobreza extrema, ensinou para cada um deles que trabalhar desde cedo é necessário para quem quer se sustentar. “Eu não tenho vergonha de falar que vim de família humilde. Eu comecei a trabalhar com doze anos em casa de família. Dessa casa em diante já passei por muita humilhação”, rememora. Pendurada na parede, dona Maria da Conceição é a única companheira de casa de Shirley. Assiste à luta da filha impassível, congelada no tempo em uma fotopintura.
O que faria então aquela mulher que nunca ganhou um presente de natal na infância acreditar que os períodos festivos trariam a oportunidade única de, após cinco anos, ter um emprego de carteira assinada? A necessidade de respirar. Falta um porto para Shirley ancorar após meia década imersa em um mar impiedoso de desemprego, nadando ao lado de 27,6 milhões de brasileiros. A falta de fôlego é agravada a cada ano acrescido na sua vida, não pelo cansaço, mas pelas portas fechadas para quem é mais velho entre os nadadores. “Eu corro atrás até de cursos, mas quando entro no site vejo que é para 18, 25, 30 anos. Não tenho mais essa idade”. A vontade de trabalhar e a conclusão do ensino médio não são suficientes. Restam os pequenos e informais impulsos dados na venda do mungunzá, nas faxinas arrumadas. Se mantendo de ponta de pé enquanto aguarda uma salvação, mesmo em forma de Papai Noel.
Quem quiser entrar em contato com Shirley pode mandar mensagem para o WhatsApp pelo número (81) 98781-6967 ou ligar para o telefone da filha dela, Laís, (81) 986494551.