Foto: Victor Moryiama
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O ônibus passa e Alice Kelly intuitivamente olha para trás. É apenas um ônibus. Ela observa até o veículo se perder de vista, levando consigo o som de um motor ruidoso e um freio escandaloso. Alice sente um aperto quando raciocina que a passagem de um ônibus nunca mais vai trazer consigo a voz do seu amigo, Marlon, que se pendurava nas janelas ou se equilibrava no teto, com o vento no rosto e o olhar de desaprovação dos outros lá fora. “Cadê a mãe desse menino?”, “Aí quando cai sobra pro motorista”, “Era bom que caísse, nunca mais ia fazer isso de novo”. Alice segue o passo.
Marlon da Silva Santos era reconhecidamente um rei. Não portava uma coroa, mas um boné da Cyclone. Sem vestes glamurosas de uma clássica majestade, mas uma bermuda da Seaway. E não se deslocava em uma carruagem, transitava pelas ruas em cima de um ônibus, olhando o mundo do topo. Marlon era conhecido na comunidade como o Rei do Surf.
Ele morreu na madrugada do dia 12 de março após receber quatro tiros bem perto de casa, no Alto da Bondade, periferia de Olinda, na Região Metropolitana do Recife (RMR). O assassinato de um jovem de 16 anos a poucos metros de sua casa não virou notícia, mesmo sendo um jovem respeitado por tanta gente, cuja morte deixou a comunidade em um silêncio triste.
Parou nos noticiários, entretanto, um fato ocorrido pouco antes do enterro de Marlon. Vídeos mostram um ônibus da linha 895 - Alto do Sol Nascente/TI Xambá entupido de pessoas, várias penduradas na janela, outras tantas em cima. Inicialmente, um programa televisivo chegou a dizer que o grupo entoava hinos de torcida organizada. O Grande Recife Consórcio de Transporte depois informou que o motorista seguiu aquela viagem sob ameaça de agressão. A Rodoviária Caxangá, empresa proprietária da linha, lamentou o ocorrido.
O que todos esses chamaram de ameaça e vandalismo foi intitulado “homenagem” por quem subiu naquele ônibus. Era o cortejo fúnebre que merecia o Rei do Surf.
‘Surfar’ é uma gíria para se equilibrar em cima do ônibus em movimento. Um lazer para os jovens do Alto da Bondade, que não têm muito mais que isso e uma pipa em dia de vento forte, um futebol improvisado em uma rua de terra. Marlon não só surfava, como ensinava a surfar. Ele é o criador do Loucos do Surf (L.D.S.). O grupo se reunia para se pendurar nos ônibus e gravar vídeos. Marlon, em seu papel de majestade, convocava os mais jovens e ensinava como se segurar, passar pela janela, se equilibrar conforme o ônibus corria.
Fotos: Victor Moryiama
Enquanto súditos e admiradores, os jovens - não só do Alto da Bondade como de comunidades próximas e até da cidade de Paulista - resolveram obedecer ao rei. “Era o sonho dele. Ele me disse um dia ‘olha, quando eu morrer, eu quero que todo mundo vá para o enterro ‘surfando’ no ônibus’, aí eu dizia ‘Para de falar isso, Marlon. Isso não vai acontecer’”, recorda Jasmilane da Silva Afredo, a Mylla, namorada de Marlon, que também era conhecido como Diamante Negro e Marlinho.
Ninguém havia visto algo parecido. Jovens de toda a parte se reuniram no local em que Marlon morava. Glauciane Venancio, mãe de consideração do jovem, decidiu fazer uma camisa com uma foto e os dizeres “Marlon, eternamente em nossos corações”. Todos começaram a confeccionar a mesma camisa. Sem condições de atender tanta gente, a dona da gráfica teve que suspender a atividade e pedir que os interessados procurassem a concorrente.
Amigos do Diamante Negro e integrantes do L.D.S. pararam um ônibus e pediram para as pessoas descerem. Eles alegam que o próprio motorista parou o veículo, mas é fato que, com tanta gente se aproximando do ônibus, não havia muito o que o motorista pudesse fazer. “Uh, é mais de mil, é o bonde do Marlinho”, “Uh, Marlinho, aê” e “Uh, sem estresse, é Marlinho L.D.S.” foram alguns dos cantos executados pelos jovens a caminho do enterro.
O Cemitério de Beberibe ficou lotado. Era tanta gente que, mesmo sendo um evento triste, pairava uma sensação de felicidade. “Apesar de tudo, eu vi muita união. E eu vi que ali várias pessoas gostavam dele mesmo. Ali eu tive a bela certeza que ele era uma boa pessoa”, explica Adla Venancio, irmã de consideração. “Eu sabia que ele tinha umas amizades aqui, no bairro sempre todo mundo gostou dele, mas eu fiquei surpreso e alegre porque tinham amigos, meninos, as mães dos adolescentes, muita gente. Foi ali que eu descobri que ele era muito querido mesmo”, diz Marcelo Alves dos Santos, pai do Rei do Surf.
Ver na televisão as críticas a algo envolvendo a morte de Marlon incomodou muito os familiares e amigos, conforme os próprios contaram em uma conversa na residência de Irani, uma das tias do Diamante Negro. Marcelo diz que uma das versões ouvidas é que além de subir no ônibus, o grupo também fez um arrastão. “Não houve nada disso. Eu não concordo com aquilo, de subir no ônibus daquele jeito porque alguém pode se machucar, mas eu entendi que foi uma homenagem e achei bonita”, resume o patriarca. Ouvindo a conversa ao fundo, irrompe Tia Neide. “Eu falei aqui pro pessoal: se eu soubesse que iam fazer aquilo eu tinha subido também”, ela conta, o que parece algo realmente difícil de conceber se tratando de uma senhora de aspecto frágil e movimento inconspícuo em roupas neutras. “Eu sempre reclamava porque eu colocava uma lona, ele ia empinar pipa e a lona aparecia rasgada. Ele dizia ‘não fui eu, não’. Hoje a lona está lá e eu queria ver ela rasgada”, completa Tia Neide.
Foi naquela conversa, em uma sala apertada de onde a tia Irani costumava ver o sobrinho sentar com os amigos e observar os Altos da Conceição e do Sol Nascente como quem observa seus domínios, que Marcelo descobriu que o filho pensava em ir embora no mesmo mês que morreu. “A gente ia viajar para São Paulo. Minha mãe se casou e o marido mora lá. Aí ele tinha o sonho de conhecer São Paulo, arrumar emprego lá. A gente tinha decidido ir”, conta Mylla. “Eu estou sabendo disso agora’, o pai comenta surpreso, ‘ele veio com essa história de dinheiro para ir pra São Paulo mesmo, mas eu achei que fosse brincadeira”.
Há um consenso entre familiares, amigos próximos e amigos distantes de que Marlinho morreu por inveja. Marcelo diz que o filho era bonito, alegre e muito extrovertido, o que pode ter gerado o sentimento de ciúme. Há um amigo que conta que a inveja pode ter sido causada por Marlon ser o líder da L.D.S. O autor do crime, inclusive, já é conhecido. Após voltarem do enterro, alguns jovens chegaram a pichar a casa onde o suspeito morava, que fica também a poucos metros do local do crime e da casa da vítima. O jovem e sua família desapareceram do Alto da Bondade. O caso está sendo investigado pelo delegado Ricardo Silveira, da 9ª Delegacia de Homicídios de Olinda. Segundo ele, ainda estão sendo realizadas diligências, mas a investigação deve ser concluída em breve.
Através dos depoimentos das pessoas que rodeavam o Rei do Surf é possível entender por que ele era uma pessoa tão querida, capaz de fazer dezenas de jovens lotarem um teto de um ônibus e um cemitério. “Ele estava sempre alegre, não tinha tempo ruim”, resume Juliane Venancio, outra irmã de consideração do rapaz. Mas não é só Juliane que diz isso, a frase sai com facilidade da boca das pessoas que o conheciam. “Ele estava sempre alegre”, diz um; “...sempre sorrindo”, diz outro. “Nem parece que era pobre”, Juliane analisa.
Os estudos não eram o forte de Marlon. Foi obrigado pela direção a sair do colégio devido às constantes reprovações. Estava em outra escola, mas ocasionalmente ajudava o pai em ‘bicos’ como pedreiro. Ele participou da construção da casa da tia Irani. O pai achava que o garoto queria ser jogador de futebol. Marlon não parecia alguém preocupado com o futuro.
O Rei do Surf começou a se pendurar e se equilibrar no teto dos ônibus sozinho, mas logo aquela prática que parecia excitante e perigosa para um grupo de garotos e garotas repletos de carências de representação, cultura e lazer, atraiu outras pessoas. Matheus Messias era seu melhor amigo. Carregando agora uma tatuagem com o nome “Marlon” e um diamante nas costas, Matheus responde de modo tímido, de quem não está acostumado a pensar sobre, o porquê de gostar de surfar. “Sei lá, é da vida mesmo”. Ele explica a parte mais divertida: “O melhor momento é quando o motorista faz malícia, tá ligado?, pra gente cair. Aí nós tira a braba”, explica ao seu jeito o jovem, cujo Facebook é um amontoado de fotos com o amigo.
Pelo menos em duas oportunidades o Diamante Negro caiu do coletivo. Em uma dessas ocasiões, chegou a quebrar o braço. Ir ao hospital fez com que descobrissem que ele estava com um problema no pulmão - passou um mês internado. “Eu dizia para ele parar. Eu tinha medo que ele fosse cair e se machucar”, ressalta Mylla. O pai também desaprovava. Alguns amigos que não faziam parte da L.D.S. chegaram a aconselhar que Marlon parasse com aquilo. Nunca parou. “Ele me disse que nunca pagaria uma passagem”, lembra a namorada.
Agora os integrantes da L.D.S. têm uma missão. Enquanto se penduravam no coletivo rumo ao sepultamento do líder eles já diziam para as câmeras dos smartphones que o grupo estava apenas começando, que eles estavam ainda mais unidos. Contra o que diz a lei, o bom senso e os mais velhos, eles pretendem continuar. Por uma sensação de rebeldia, perigo e por uma brisa no rosto, olhando de cima para baixo o mundo que costuma pisá-los. Alice Kelly continuará observando os ônibus que cortam seu caminho. Ela é amiga de Marlon desde a época do colégio em que foi expulso. A morte do amigo a deixou dilacerada, um garoto que brincava com todo mundo e não alimentava maldade. Eventualmente ela se deparará com garotos agarrados na janela, sorrindo, brincando, fazendo do jeito que o Rei ensinou. E Alice seguirá o passo.
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