Ao entrar em licença médica para a realização de uma cirurgia, na última sexta-feira (29), o presidente Lula (PT) se ausentou de sua agenda, deixando, em teoria, o cargo e os compromissos ao vice, o ministro Geraldo Alckmin (PSB). No entanto, na visita a uma região do Rio Grande do Sul, na quinta-feira (28), atingida por um ciclone extratropical, a primeira-dama Rosângela da Silva, a Janja, assumiu a agenda, causando críticas e opiniões controversas de todos os lados.
Políticos da oposição se manifestaram contrários à atitude, questionando o papel da primeira-dama em uma agenda de Estado, como se ela estivesse substituindo o chefe do Executivo nacional, “vice-presidente Janja”, como a chamaram nas redes sociais. Em resposta, apoiadores do governo se posicionaram em defesa da socióloga, apontando até a possibilidade de ela assumir outros compromissos futuros sem a presença do presidente da República. A aparente justificativa de sua participação na agenda se deu como forma de se redimir pela situação de ter publicado um vídeo dançando na Índia no mesmo dia em que outra tragédia climática atingiu o estado sulista.
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O caso, no entanto, é mais complexo do que parece, como explicou, ao LeiaJá, o cientista político Elton Gomes.
Participação da primeira-dama
“Historicamente, no Brasil, a figura do cônjuge do mandatário ocupa uma postura muito discreta. Tivemos apenas uma mulher solteira que exerceu o cargo de chefe do executivo nacional, que foi Dilma Rousseff, e todos os outros presidentes da República, desde que a gente teve a transição do regime monárquico para o republicano, foram homens casados, que tiveram suas esposas [exercendo uma] função muito discreta, do ponto de vista de suas aparições públicas e de seu envolvimento com as questões de governo”, relatou Gomes.
“A figura pública da primeira-dama no Brasil é uma coisa bem mais recente, em termos históricos, e a gente pode situar isso já na nossa democracia, amplamente midiatizada, no período da redemocratização. Sobretudo a partir da chegada ao poder do primeiro presidente efetivamente eleito após o fim do regime militar”, continua Elton Gomes.
Primeiras-damas do Brasil, desde a posse de José Sarney, em 1985: Marly Sarney; Rosane Collor; Ruth Cardoso; Marisa Letícia Lula da Silva; Marcela Temer; Michelle Bolsonaro; e Rosângela da Silva.
Causas sociais
Um dos papeis mais recorrentes ocupados pelas esposas dos presidentes do Brasil foram relacionados a pautas sociais, tendo uma evidência maior a partir de Rosane Collor “como alguém que lançou uma tendência que se manteve na vida pública brasileira que é das primeiras-damas envolvidas com causas sociais, de assistência aos menos favorecidos, pessoas portadoras de deficiência, crianças de rua, os surdos, como é o caso da ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro (PL)”, detalha o cientista político.
A grande diferença entre as primeiras-damas anteriores para a atual, segundo Gomes, é a atuação em seus papeis “sem ter um envolvimento muito profundo naquilo que a gente pode chamar de ‘intriga palaciana’ e/ou político partidária”. Mesmo nomes como Ruth Cardoso e Marisa Silva, que estiveram ao lado de seus maridos, Fernando Henrique Cardoso e Lula, respectivamente, por dois mandatos seguidos, com o poder de influência que tinham, não chegaram a participar ativamente de debates e decisões políticas. “Ao que consta, não intervia, por exemplo, em nomeações de cargos de primeiro escalão, como ministros ou presidentes de estatal, também não se envolvia na articulação política do governo para composição de alianças no Congresso”, afirmou.
Janja como diferencial
Quando se observa o histórico das primeiras-damas do Brasil, é possível perceber as diferenças marcantes que Janja não faz questão de esconder. Com seu passado de militância política, ela ainda mantém suas opiniões e posicionamentos evidentes. “Ela já era uma pessoa que vivia uma militância política mais intensa, uma pessoa mais ‘orgânica’ ligada aos ciclos do Lulo petismo, uma socióloga petista, que através de sua militância conheceu o futuro esposo e chegou ao poder junto com ele. Uma pessoa com vivência política, uma atuação não necessariamente partidária, mas seguramente política, ideológica e militante, e isso fez com que ela tivesse um interesse maior com questões político partidárias. E o presidente da República, ao que consta, considera que a sua participação não é indevida, tanto que, ao invés de censurar, pelo contrário, incentiva”, explanou Gomes.
Essa característica de Janja, mesmo que não única a ela, é uma das mais evidentes, como pôde ser visto na visita ao Rio Grande do Sul. A ocupação de espaços nunca antes ocupados por primeiras-damas torna a presença de Janja na agenda presidencial uma grande reviravolta nas interações governamentais. “Essa é a grande questão. Ela acabou se transformando em mais uma instância de veto no complexo xadrez político brasileiro, em que você já tem múltiplos pontos de veto”, disse.
Janja no poder?
Ao contrário do que se especula, não existem sinais claros de que a primeira-dama tenha intenções de ocupar o cargo da presidência. Existem, no entanto, ações que, segundo o cientista político, devem ser observadas com atenção, tendo em vista que os fatos recentes não aparentam ter precedentes. “[Janja assumir agenda de governo] é muito sério porque representa uma quebra da liturgia do cargo, e representa também uma quebra da institucionalidade. Porque a primeira-dama tem a função honorífica como cônjuge, ela não exerce um cargo público”, Gomes esclareceu.
“A gente precisa acompanhar, é um fenômeno novo”, enfatiza o cientista político, mas sem deixar de ressaltar os possíveis riscos que futuras participações podem ocasionar no cenário político nacional. Com riscos reais de sua presença constituir ilegalidade, o governo precisa ficar atento a como deve se apresentar à nação, que não pertence unicamente à esquerda.