Em setembro de 2017, o espetáculo 'O evangelho segundo Jesus, Rainha do Céu' foi proibido de ser apresentado na cidade de Jundiaí, em São Paulo, sob justificativa de “macular o sentimento do cidadão comum”. O espetáculo, que traz o personagem Jesus Cristo como uma mulher transexual, voltou a sofrer perseguição no ano seguinte, quando foi cancelada da programação do Festival de Inverno de Garanhuns pelo próprio governo pernambucano, desta vez, sob pretexto de ser causador de polêmica.
Pelo mesmo caminho, percorreram os espetáculos Abrazo, do grupo Clowns de Shakespeare, e Gritos, da Companhia Dos à Deux, que tiveram temporadas canceladas pela Caixa Cultural (do Recife e Brasília, respectivamente); Coroação de Nossa Senhora dos Travestis, do Grupo Academia Transliterária, retirado da Virada Cultural de Belo Horizonte após petição online; e o espetáculo Res Pública 2023, da Companhia Motosserra Perfumada, proibido de estrear em São Paulo por não reunir "qualidade artística", segundo o diretor da Funarte, Roberto Alvim. Todos no ano de 2019. Em comum, os espetáculos citados têm temáticas LGBT e de viés político.
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Muito embora os casos citados acima tenham ocorrido em pleno século 21, o cenário que se vislumbra para os profissionais das artes cênicas é o mais pessimista possível. Além de estarem diante do afunilamento do espaço para escoar suas produções artísticas, os trabalhadores das artes cênicas ainda se veem diante da dificuldade em levantar recursos e obter apoio financeiros para suas produções. Nesta quinta (19), em que se celebra o Dia Nacional do Teatro, o LeiaJá conversou com alguns representantes da classe em Pernambuco a fim de entender como estão se colocando em meio ao cenário atual das artes no Brasil e quais são as perspectivas para o futuro.
Teatro de Pernambuco
Pernambuco tem uma história de vasta produção teatral. Em meados da década de 1950, os principais jornais da capital contavam com cronistas especialmente dedicados a escrever sobre o que se apresentava nos palcos do Recife. As companhias e artistas pernambucanos também provaram, ao longo dos anos, o poder das suas artes cênicas com grandes produções, artistas e dramaturgos que percorreram os quatro cantos do país, a exemplo do Teatro de Amadores de Pernambuco (TAP), Waldemar de Oliveira, Hermilo Borba Filho e Geninha da Rosa Borges.
Os caminhos, no entanto, nunca foram fáceis. Oséas Borba Neto, diretor do grupo João Teimoso, relembra algumas dificuldades: "Comecei a fazer teatro ainda no período da ditadura, então a gente aprende a se virar, nem sempre a gente teve lei de incentivo e censura sempre foi um fantasma". Ele conta que no início do grupo, há 18 anos, o dinheiro que viabilizava as produções vinha de rifas, ajuda de amigos, Livro de Ouro (estratégia para levantar dinheiro mediante assinaturas dos que se disponibilizam em doar) e marketing direto.
O diretor do grupo Totem, Fred Nascimento, também sabe o que é fazer arte cênica com recursos e ajuda escassos: "Se fossemos depender de financiamentos e ajuda financeira não existiríamos, pois sempre sobrevivemos 'às próprias custas S/a'. Nosso primeiro edital de financiamento foi aprovado em 2011, quando o grupo já tinha 23 anos". Hoje o Totem já conta 32 anos de estrada.
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Sobre apoio e incentivo, Samuel Santos, diretor do grupo O Poste, aponta o descaso do poder público para com as artes: "Os cortes para a cultura sempre foram violentos, ou melhor, as políticas para a cultura geralmente são pensadas de forma tímida, menor, principalmente no teatro feito por coletivos, grupos e companhias do Nordeste". Fred complementa: "Quanto aos cortes institucionais, no Recife, os financiamentos, prêmios e fomentos financeiros já vêm acontecendo há anos, a classe perdeu o Fomento às Artes Cênicas da Prefeitura, perdeu o SIC (Sistema de Incentivo à Cultura, extinto em 2012), gerências foram extintas, temos teatros sucateados...".
Para driblar essa realidade, os grupos e companhias têm recorrido aos seus próprios artistas e público através de campanhas de financiamento coletivo, doações e o investimento de dinheiro do próprio bolso. "A gente não pode depender só de editais, aqui em Pernambuco a gente só tem o Funcultura e alguns pequenos editais que a Prefeitura do Recife lançou. A arte não vai parar, ela se reinventa e vai buscar novas formas de se produzir", diz Oséas Borba.
Censura?
Nessa constante necessidade de reinvenção, está, também a preocupação em lidar com uma onda de proibições e um ensaio de volta da censura, haja vista os casos citados no início desta matéria. "Essa realidade já vinha se desenhando no cenário político brasileiro, que é a de um governo eleito dentro de uma democracia para instaurar a perseguição ao pensamento livre. É surreal, isso sempre nos pega de uma forma violenta. Como ainda é tudo 'novo', as articulações acontecem ainda timidamente, mas acontecem", frisa o diretor Samuel Santos.
Ainda que de maneira tímida, tais articulações estão acontecendo em diversas frentes, como explica Fred Nascimento, do Totem: "Quanto à classe artística, vejo dois tipos de ação/reação, a primeira é aquela que vem em forma de arte, que estão surgindo cada vez mais, espetáculos que denunciam, que gritam, que partem pra briga, que chama pra luta, cada um à sua maneira, claro. isso vem crescendo. A segunda é a coletividade, os movimentos coletivos, cooperativas, que também já estão acontecendo, ainda são poucos, mas a tendência é crescer, e eu acredito nesse crescimento. Todos sabem que o futuro de sua arte, de sua própria sobrevivência, depende disso".
Os outros diretores concordam com Fred e engrossam o coro sobre a importância da coletividade. "O que precisamos é nos articular mais. Resistir e existir", diz Samuel. Oséas complementa: "A gente tem que aprender a esquecer nossa diferenças e se unir, as artes como um todo, a gente prega muito isso na Guerrilha Cultural da gente. Do contrário, eles vão começar a eliminar os mais fracos e aquele segmento que tiver um pouquinho mais de estrutura será o último a ser levado. Acho que o caminho é a união para enfrentar todo esse turbilhão que vem pela frente".
Dar as mãos é a forma que esses artistas do teatro, seus grupos e colegas encontraram para resistir e continuar o seu fazer artístico de maneira livre. O objetivo comum é romper com qualquer amarra para que sua arte nunca se acabe e continue tocando e sensibilizando o público. Fred Nascimento conclui: "A liberdade é essencial para qualquer atividade humana. A arte é o biscoito fino da humanidade, portanto, aqueles que tolhem, censuram, perseguem e proíbem qualquer tipo de liberdade são pessoas autoritárias e, politicamente falando, são pessoas perigosas, pois querem silenciar os que não pensam iguais a eles. Os grupos, diretores, atores, produtores, dançarinos, performers, músicos e todos os artistas e técnicos têm uma grande batalha pela frente e devem sempre denunciar e resistir ao autoritarismo. Jamais devemos nos calar ou retroceder diante do obscurantismo e sim enfrentá-lo".
Imagens: Reprodução
Chico Peixoto/LeiaJáImagens/Arquivo
Reprodução/InstagramGrupoTotem