O romance de estreia de Fernando de Mendonça é uma malha delicada de referências. Delicada, mas não sutil. Um detalhe em H (Grupo Paés, 119 págs.) traz novidade nenhuma, o que não significa dizer que engrossa fileiras mais frequentadas da literatura brasileira contemporânea. A epígrafe foi buscada em Mrs. Dalloway, de Virginia Woolf, e foi justamente comentando as obras da escritora britânica que Harold Bloom voltou a Sainte-Beuve, para quem certas leituras nos deixam pergunta crucial: Que pensaria o autor sobre nós? O trabalho de Fernando sugere sentimento próximo, de interesse com até onde poderemos ir, se conseguiremos perceber e ressignificar o que mora além dos detalhes, na teia de horizontes estéticos. Rede que, embora não seja percebida por todos, irmanará e provocará muitos leitores.
Em tempos que premiam quem segue maré, quem insiste nos bondes “pós-modernos”, Fernando se nega a simplesmente testemunhar fragmentações e perdas. Texto deixa muito claro seu percurso intelectual, a jornada que o romancista empreendeu até ali, incompatível com a direção da correnteza. O belo e muito franco prefácio de Lourival Holanda resume:
“O ato criativo começa por convocar o caos, como um pequeno demiurgo, e submetê-lo a algum reordenamento. É o que faz o narrador, tanto reordenando a linguagem, como selecionando, no mundo de muitas sensações cotidianas, aquelas que lhe parecem mais merecedoras de um leitor arguto”.
Os detalhes que o personagem Hugo veicula podem levar a Proust, às reflexões sobre memória e consciência em Benjamin e Freud, como também nos lança em direção ao clássico de Alain Resnais, o filme Ano passado em Marienbad. Cada sutil imagem propõe duplo voo: por um lado, resgate de sensações e lembranças; por outro, remetem ao universo de referências culturais que lidaram com as fascinantes viagens que realizamos cotidianamente, às pontes que nos fazem ir de um detalhe até a lembrança de quem éramos, ou de quem pensávamos ser.
Um dos parágrafos, por exemplo, provocará em diversos leitores comparações com A paixão segundo G. H., embora não surja como influência emulada, dessas que resultam em grotescas imitações de Clarice Lispector. Pelo contrário, a sequência de impressões chega a balanço diferente:
“Não posso continuar. Não posso me iludir mais com o que já está feito. Não posso mudar o concluído, o estabelecido pelo destino que, até ele, já deve estar cansado de me espreitar. Chega. Reconheço a força dos dias passados, assumo a impossibilidade de qualquer mudança, e permaneço só mais um pouco para o último sofrimento. Uma última visita ao passado que se foi. Em busca das memórias que me pertencem, do detalhe que não pude evitar. Pois, ainda que não se possa mais, eu preciso tentar encontrar o que perdi. O algo que esqueci mas não deixei de sentir a casca”.
Voltando ao Bloom de O cânone ocidental, não é exagero afirmar que, assim como Em Virginia Woolf, a realidade de Um detalhe em H “tremula e oscila a cada nova percepção e sensação, e as ideias são sombras que ladeiam seus momentos privilegiados”. Porém, partindo dali, também cabe a ressalva: Fernando de Mendonça ainda está bastante longe daquela eloquência e do domínio da metáfora.
Muito capaz que esse mesmo leitor-modelo, tão arguto e sensível, sinta-se incomodado com o excesso de adjetivação. Há momentos do livro que arriscam demais no adorno, sentimental ou descritivo, a beirar a cafonice, contrariando as expectativas estéticas criadas pelo próprio romancista. Em tais passagens, fica o inevitável juízo de que algo deveria ter sido sugerido por metáfora, ou mesmo silenciado, pois findaria mais expressivo.
Eis um desses trechos onde o detalhe não ilumina nem transcende, apenas destoa. Nele, a jovem – que também deveria chamar nossa atenção – termina sendo banalizada pela descrição, solapada pelos trajes, adjetivos e explicação desnecessários.
“E uma jovem com blusinha cor de rosa e jeans apertado. A marcar cada sinuosidade proporcionada pelas acentuadas curvas de seu corpo. Lanço um olhar rápido sobre Helena para me certificar que ela não está preocupada comigo, experimentando uma estranha sensação de algo errado, e torno meu interesse para a jovem mais à frente, de costas. Mais atraente que as demais do recinto. Percebo em suas curvas um modelo perfeito para meus traços, bem semelhante aos modelos ilustrados pelo professor em aula para o esboço de um corpo ideal”.
Como pondera Lourival Holanda, no entanto, esses momentos canhestros devem ser tolerados, porque o tempo há de não só ratificar a sensibilidade de Fernando, mas também acompanhá-la de maior cuidado com os excessos. E não se trata de recair nas lâminas oficineiras, cuja economia termina por contingenciar até o essencial: a literatura. Desse risco, o autor de Um detalhe em H parece liberto. Graças!