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No último dia 1º de setembro, 16 jovens saíram juntos e sem algemas da Fundação de Atendimento Socioeducativo (Funase) de Arcoverde, no Sertão de Pernambuco. Nunca tantos internos haviam deixado aquela unidade de uma única vez. Não se tratava de fuga, motim ou algo do tipo. 

O grupo seguia para o Centro de Ensino Superior de Arcoverde (Aesa), a menos de dez minutos dali. No local haveria um evento de lançamento de livro e sessão de autógrafos. Era o livro escrito por eles. Era o autógrafo deles que as pessoas presentes esperavam.

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O livro "Diário da Tranca", editado pela Editora Cartonera, surgiu de um projeto desenvolvido pela pedagoga do Centro de Atendimento Socioeducativo (Case/Cenip) de Arcoverde, Jedivam Conceição. São 49 textos escritos pelos internos entre setembro de 2020 e o último mês de julho. Os próprios adolescentes participaram da confecção das edições. A ideia nasceu a partir de uma sugestão do Judiciário, que propôs um projeto que se assemelhasse à remição pela leitura do sistema prisional, que reduz a pena do reeducando a partir da confirmação de leitura de obras. Jedivam Conceição queria algo adaptado para as particularidades dos jovens e que abarcasse até mesmo os que não sabiam ler.

A pedagoga estava presente na cerimônia de 1º de setembro. Enquanto acompanhava o evento, também transmitido ao vivo no canal da Funase do YouTube, Jedivam olhava para os garotos com um sentimento de orgulho. Perguntada sobre o que passava na cabeça dela naquele momento, diz que havia uma sensação de poder fazer a diferença. “É a sensação de transgressão. É a sensação de que a gente pode mudar esse sistema desde que não compactue com muitas práticas que ele reproduz”, conta.

Jedivam lembra da primeira vez que entrou no sistema. Era junho de 2013. Subiu as escadas e se deparou com as grades de ferro, de pintura desgastada em verde. Entre os espaços daquelas grades, várias mãos amontoadas, muitos olhares curiosos. “Quem é você?”, “Com quanto tempo estou?” e “Quando vai sair meu relatório?” foram algumas perguntas que ela ouviu ao cruzar aquele corredor. 

“Eu não tinha nenhuma noção do que era ser pedagoga em uma instituição dessa. Eu vim nessa expectativa de que seria difícil, só não sabia que seria tanto”, recorda. A dificuldade encarada por Jedivam não diminui a empolgação com a qual vai trabalhar. Mora em um apartamento localizado na mesma avenida do Case/Cenip. Levanta às 7h, se arruma, vai a pé e chega às 8h no local de trabalho. “Eu não sei viver nada sem meu coração estar ali inteiro. Eu nunca tive esse lugar de obrigação, eu não tenho esse sentimento, essas reclamações. Eu sempre digo que a pedagogia é minha paixão. Eu sou fascinada, tenho um tesão muito grande por aquilo que faço”, afirma.

A pedagoga desenvolveu o "Diário da Tranca" durante a pandemia de Covid-19, que em alguns momentos resultou na suspensão de visitas na Funase de Arcoverde. “Foi muito difícil ver aqueles meninos viverem o isolamento do isolamento. Sem que as famílias pudessem ver, sem que a equipe pudesse ir até eles”, conta Jedivam. As aulas também ficaram suspensas devido à crise sanitária e as atividades externas foram quase nulas. 

“Meu objetivo é que esses meninos sejam vistos. O projeto é feito pelos meninos. Não é feito com os meninos, é feito por eles. A gente não pode dizer o que é bom para o outro, a gente precisa construir com o outro”, completa a educadora. A obra foi desenvolvida no âmbito do projeto intitulado Clube Castelar, que montou uma sala de leitura dentro de um contêiner na unidade socioeducativa. No Clube Castelar, os adolescentes são estimulados a ler e escrever e conversar sobre os temas trabalhados nos livros. Essa participação resulta em relatórios técnicos que são incorporados aos processos dos internos, tendo peso positivo na avaliação da Vara Regional da Infância e Juventude. O termo ‘castelar’, muito usado pelos jovens no sistema, significa “refletir”, “pensar”.

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M.H., de 17 anos, castelava enquanto encarava a grade do seu cubículo na manhã de 28 de junho. Pensava na mãe. Resolveu escrever sobre isso. “(...) era pra eu estar na rua fazendo a coisa certa, mas estou aqui longe da minha família, sabendo que posso não amanhecer vivo. Mas com fé em Deus vou sair desse lugar e viver em paz, sem matar, sem roubar”, afirma em uma das páginas do livro.

M.H. está há sete meses na unidade. Responde por ato infracional análogo à tentativa de latrocínio. Diz que durante uma briga levou pedradas de três homens. Resolveu revidar dias depois, acertando um tiro nas costas de um deles.

O jovem sonha concluir os estudos e um dia se tornar médico cardiologista - objetivo que almeja desde o dia que a avó morreu de um problema no coração, quando ele tinha uns dez anos. M.H. parou de estudar no sétimo ano. “Não queria mais estudar. Só queria fazer corre, ficar traficando”, relata em uma conversa por telefone. M.H. está envolvido com o tráfico de drogas desde os 14 anos.

“Estou decidido a não me envolver mais, quero mais essa vida não”, acrescenta. "Se eu sair daqui, vou ver se faço uma faculdade ou um curso. Não quero mais voltar para cá. Vou fazer de tudo para não fazer nada errado", diz. 

Na biblioteca da unidade, M.H. teve acesso a livros diversos. A obra que mais gostou diz se chamar "Beijo Francês". "É que é tudo misturado, tem romance, aventura, tudo junto. É como se ela encontrasse o amor verdadeiro, amor eterno, não só passageiro", analisa.

Fora da Funase, não costumava ler. “Nas ruas a gente não vê oportunidade. Muita gente julga você pela aparência, pelo jeito do cara andar. Não sabe que você tem coração puro, aí você tem a oportunidade de entrar na vida do crime”, comenta. M.H. diz que nas oficinas de leitura é diferente, que todos os jovens são iguais. “Tem gente que acredita na gente, sabe o que nós somos de verdade.”

Jedivam afirma que M.H. é um jovem de grande potencial. “Ele é extremamente dedicado e comprometido com as atividades que faz. Se ele tiver oportunidades para fazer aquilo que ele deseja fazer, vai muito longe.”

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R.V., de 17 anos, foi um dos que mais escreveu textos para o "Diário da Tranca". Sete ao todo. Nos escritos, tece análises sobre os livros que lia na unidade. Inicialmente, classificou 'O Senhor dos Anéis', de J.R.R. Tolkien, como sem graça. “Eu leio e não saio do canto.” Mas a opinião foi mudando com o avançar da história. “Mesmo sem saber o final da história, eu já estou gostando dela, pois até sonhar com a história do livro eu sonhei”, assinalou. Também aprovou 'As crônicas de Nárnia', de C.S. Lewis. “Ótimo livro que me fez pensar muito. Chegando no final, você se emociona como se fosse real aquela história.”

Não foi apenas crítico de obras, também escreveu sobre saudade e solidão". “Acordei com vontade de chorar, mas eu não queria que os outros colegas de cela me vissem triste por não ter conseguido ver minha mãe antes de ser sentenciado a seis meses”, escreveu em sua primeira contribuição, em 23 de setembro de 2020. “Eu abraçava minha mãe, mas sabia que seriam algumas horas só, que iria acabar e eu passaria mais 15 dias sem ver ela”, conta o jovem à reportagem.

A mãe de R.V. temia muito a ida do filho para a Funase, pois ele tinha o hábito de se cortar. A automutilação não se repetiu dentro do Case/Cenip e Jedivam acredita que o Clube Castelar teve um papel nisso. “Eu só pensava em me cortar, só vinha esse pensamento. Mas, eu percebia que eu devia apreciar a passagem ou a paisagem natural. Ver o pôr do Sol, ver o céu azul, as estrelas, a Lua, ver a cidade de cima e poder saber que o mundo é grande e eu preciso explorar o mundo todo”, declarou R.V. entre as páginas 14 e 15 do livro.

Desde que deixou a Funase, ele tem trabalhado ajudando o tio, que é pintor. Também está constantemente desenhando, seu passatempo preferido. Pensa em concluir o ensino médio e lembra com carinho da participação no diário. “Foi uma coisa maravilhosa, eu não sabia que ia se tornar um livro. Se eu pudesse fazer de novo, gostaria muito de fazer outro”, diz.

Segundo R.V., o livro evidencia que o sistema socioeducativo não é só violência. “As pessoas que não sabem o que nós passamos lá dentro vão ter a oportunidade de saber como é”, ressalta ele, que considera ter sido transformado pelo Clube Castelar. “Eu estava pensando em fazer coisa errada, mas quando cheguei no Clube Castelar, fui mudando o pensamento. Decidi sair e virar trabalhador. Estou nessa até hoje, fazendo de tudo para não voltar a fazer coisa errada.” O adolescente teve a maior nota na redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) de 2020 entre todos os garotos do sistema socioeducativo de Pernambuco que fizeram as provas.

"Ele é aquele menino que sempre teve vários sonhos e não teve a oportunidade de vivenciá-los, é de uma família sem muitos recursos, tem uma mãe com vários filhos. Ele queria muito ir para a academia, mas não consegue e faz uns pesos em casa; quer muito aprender violão, mas não tem condições de pagar um curso", detalha Jedivam. "Uma das coisas mais felizes que vivenciei com ele é que quando ele ganha livros, é como se ganhasse na loteria. A gente já deu livros e ele ficou fascinado.”

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Paula Cibelle, coordenadora-geral do Case/Cenip Arcoverde, diz que se emocionou com a cerimônia de lançamento de "Diário da Tranca". “A gente via a alegria de cada um. Eles agradecem pela oportunidade de serem ouvidos - não ouvidos pela equipe, pelo juiz, mas pela sociedade”, destaca. “Ninguém viu ali um adolescente da Funase. Era um grupo de adolescentes que estava lançando um livro”, ela completa.

A coordenadora está no cargo desde fevereiro de 2019 e garante que de lá para cá tem obtido “saltos excepcionais”. Conta que na noite do evento um representante do batalhão da Polícia Militar (PM) local agradeceu por estar no recinto como convidado e não para dar apoio em uma ocorrência. “Ele disse ‘são dois anos praticamente que a Funase de Arcoverde não nos pede ajuda’”, lembra Paula. 

Tanto Paula quanto Jedivam destacam o quanto a unidade é pequena. Com capacidade para 26 adolescentes, era uma antiga cadeia pública. “Há poucos espaços para atividades. Mas, contamos com funcionários que fazem oficina, como de aplicação de gesso, feltro e jardinagem”, diz a coordenadora. 

Paula elogia o trabalho feito pela pedagoga Jedivam e atribui também a ela os “saltos excepcionais”. “Eu falo ‘lá vem tu com tuas loucuras, mas pode fazer. Me diga o que você precisa’.”

Uma das ‘loucuras’ feitas por Jedivam foi pedir que não houvesse agente socioeducativo dentro da sala de leitura. “Uma das coisas que na instituição é regra é que sempre tem que ter um agente socioeducativo junto do adolescente em qualquer atividade, fora ou dentro da instituição", diz Jedivam. "E uma das coisas que estabeleci desde o começo foi ‘eu não quero nenhum agente comigo, eu dou conta. Me deem o rádio e se precisar eu chamo’”. 

Ela costuma levar grupos de dez adolescentes para o Clube Castelar. Traz uma garrafa de café, uns biscoitos. “Faz toda a diferença. Uma coisa é um atendimento em que estou de um lado da mesa, eles do outro e um agente na porta. Outra coisa é um espaço de leitura, onde podem ler o que quiserem, comem biscoito, brincam, conversam e estabelecem relações.”

Era à sala de leitura que J.V., de 17 anos, ia para atenuar a saudade do único filho, que tinha poucos meses de nascido. Harry Potter e Bella Swan fizeram companhia para o jovem, que respondia ao ato infracional análogo ao crime de furto. Ele não assumiu a autoria, mas foi apreendido em flagrante e passou sete meses na unidade.

As visitas na Funase de Arcoverde ocorriam a cada 15 dias, por causa da pandemia. Mãe e esposa do jovem intercalavam as visitas. O bebê não podia visitar o pai por causa dos protocolos sanitários. “E eu tinha medo de alguém da família ir me visitar e pegar a doença”, lembra o adolescente.

J.V. escreveu um único texto para o livro. Foi no dia que o filho completou quatro meses de nascido. “Hoje eu acordei muito triste por não estar presente com meu filho. Ele está completando quatro meses e não estou com ele. (...) Quando sair, quero trabalhar e ajudar meu filho”, declarou na obra.

Ele saiu e conseguiu um emprego. Mora com a esposa e o filho, agora com um ano e dois meses, em uma casa modesta, de R$ 150 de aluguel. Começou a trabalhar de ajudante de pedreiro com um tio e recebeu R$ 200 pelo serviço realizado na última semana.

“Eu vou trabalhar com o que aparecer para ganhar dinheiro. Com um filho, tenho que trabalhar no que vier”, diz. J.V. espera no futuro ter tempo para concluir os estudos à noite. Quer um dia sair da casa de aluguel. Avalia que aquela sala de leitura na Funase de Arcoverde é capaz de mudar a visão de mundo e dar esperança aos adolescentes. “Participar das atividades muda a pessoa, faz querer sair dali para construir sua vida.”

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Paula Cibelle, a coordenadora-geral do Case/Cenip Arcoverde, comemora o baixo número de reincidentes, ou seja, de jovens que voltam para a Funase após conseguir a liberdade. De 2019 para cá, ela calcula que três ou quatro voltaram à unidade e, em alguns desses casos, por causa de descumprimento da liberdade assistida. 

“A gente oferece sim a ressocialização. Mesmo dentro de todas as peculiaridades, a gente consegue oferecer”, afirma ela. “Eu acredito muito no nosso trabalho, sou apaixonada pelo meu trabalho.”

A pedagoga Jedivam Conceição não acredita na capacidade de ressocialização das unidades prisionais e socioeducativas. Defensora do abolicionismo penal, ela sustenta que a sociedade é que deveria se educar para receber esses adolescentes.

"É como se o menino não tivesse sido socializado, é negar muito a história. O Estado foi negligente com esse jovem todo o período até os 12 anos. A partir dos 12 anos pode punir, então agora o Estado vai punir", ela critica.

"A Funase é uma lixeira social em que se coloca aquilo que não é bonito", continua a pedagoga. "Eu digo aos meninos todos os dias: 'vocês não estão na Funase só pelo ato infracional, estão porque são pobres, pretos, de periferia, porque estavam evadidos da escola ou não são escolarizados'. O filho de rico quando quer usar droga e não tem dinheiro rouba dos pais, o pobre vai para a rua roubar."

Jedivam sonha em ampliar o projeto do diário. Quer levar a ideia para as escolas públicas e comunidades. "Um lugar que eu sempre quis estar é com esses meninos que saem. Se já eram vulneráveis antes de entrar na instituição, continuam muito mais porque saem com o estigma de que estavam privados de liberdade. R.V. e outros confidenciaram que queriam continuar no projeto, continuar lendo os livros que estavam lendo, só que não têm acesso", explica a pedagoga.   

Em determinada ocasião durante a pandemia, um dos socioeducandos ofereceu o benefício de R$ 50 que recebia por mês para comprar álcool em gel para Jedivam. “Você não pode adoecer”, dizia, profundamente preocupado. Durante o telefonema com a reportagem, o adolescente M.H. classificou a pedagoga como uma pessoa especial, muito boa e guerreira. “Para onde ela vai, ela sempre leva a gente no coração”, afirmou. “O que M.H. disse para você sobre mim é maior do que qualquer prêmio que eu possa receber”, diz ela.

Por meio de editoras independentes, "Diário da Tranca" tem circulado no País e já foi levado para Portugal, Chile e Peru. Projetos semelhantes estão sendo planejados para unidades da Funase no Recife e em Jaboatão dos Guararapes. A obra estará disponível na próxima Bienal Internacional do Livro de Pernambuco, que será realizada de 1 a 12 de outubro no Recife.

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