Divulgação/ César Muñoz Acebes/ Human Rights Watch
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O cenário de grande déficit de vagas para presos em Pernambuco abre espaço para a figura dos chaveiros. Eles são presos, frequentemente condenados por crimes graves como homicídio, que exercem funções do Estado, como abrir e fechar celas, fazer a contagem de detentos, encaminhar para acompanhamento jurídico, escoltar durante deslocamento, entre outras ações. Com direitos a regalias, esses presos também são acusados de promover violência nas unidades. Familiares de reeducandos contam que chaveiros têm, inclusive, determinado transferências no cárcere.
“De alguma forma, eles são um braço do Estado lá dentro”, diz o especialista em segurança pública e doutor em sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Eduardo Matos de Alencar. O especialista é autor do livro “De quem é o Comando? O desafio de governar uma prisão no Brasil”. Publicada neste ano pela Editora Record, a obra discute as mediações do sistema penitenciário brasileiro a partir de vivências no Complexo do Curado, no Recife.
Alencar conta que os chaveiros, também chamados de representantes dos presos, regulam diversos conflitos e gerenciam mercados ilegais no cárcere, como tráfico de drogas, venda de celas e alimentos. Por conta da posição que ocupam, geram ressentimentos, disputas e desejo de vingança, que acabam se concretizando em violência e perseguições quando eles chegam ao semiaberto. “Ninguém que tenha trabalhado junto com a polícia tem boa reputação”, conta.
O doutor em sociologia estima que os chaveiros surgiram no nascimento do sistema penitenciário pernambucano. “Quando nasce [o sistema penitenciário], não tinha a figura do agente penitenciário, era sempre gente pouco qualificada da Polícia Civil e o número sempre foi aquém de pessoas. Na década de 90 já tinham notícias desses caras [chaveiros]”, explica.
Um relatório, produzido por meio de Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) a partir de inspeções realizadas em 2008, apontava a presença desses detentos no Complexo do Curado: "Donos da cadeia, os ‘chaveiros’ têm um pequeno comércio em seu pavilhão, onde vendem para outros detentos e familiares produtos alimentícios e de higiene por preços bem maiores do que os praticados no mercado. A CPI encontrou uma ‘bodega’ que havia sido alugada pelo ‘chaveiro’ a outro detento mediante o pagamento de R$ 200 reais por mês. O preso ‘locatário’, por sua vez, contratou como ‘empregados’ da vendinha outros três detentos, que recebiam salário mensal de R$ 650 cada um, demonstrando que ter ‘comércio’ dentro da cadeia dá lucro, e bastante! O que faz o ‘chaveiro’ com o lucro das ‘bodegas’? Divide com os funcionários da cadeia, apurou a CPI”, diz relatório.
Em 2014, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) também tratou do tema: “Os agentes não ingressam a fundo nos pavilhões, os quais ficam sob o controle absoluto dos presos, favorecendo o comércio de drogas, armas e até mesmo de alimentos, ficando clara a circulação de dinheiro. Registre-se que durante a inspeção no PFDB [Presídio Frei Damião de Bozzano, no Complexo do Curado], ocorrida num dia chuvoso, uma pessoa se apresentou com um guarda-chuva para amparar os integrantes da comissão de inspeção, o qual permaneceu por algum tempo. No entanto, a comissão foi surpreendida com a voz alta de um agente penitenciário mandando que aquela pessoa levantasse a camisa, constatado que estava de posse de duas facas peixeiras na cintura, uma em cada lado, demonstrando com isso a total insegurança dos que ali transitam ou fazem inspeção.”
Já um relatório do Humans Right Watch de 2015 diz que “eles também usam ‘milícias’ compostas de outros presos para ameaçar e espancar aqueles que não pagam suas dívidas ou que questionam sua autoridade. Os agentes e autoridades do sistema prisional fazem vista grossa ou até participam das ações dos chaveiros em troca de propinas, de acordo com vários entrevistados, incluindo o diretor de um presídio.”
O mesmo relatório do Humans Right Watch aponta que os chaveiros vivem em celas privadas, muitas vezes equipadas com televisores, ventiladores, geladeiras e banheiro. Presos conhecidos como 'chegados' cozinham, limpam e lavam roupas para os chaveiros em troca de privilégios, diz o órgão.
Um diretor contou à equipe do Humans Right Watch que, em alguns casos, os chaveiros são escolhidos pelos diretores ou designados pelo chefe de segurança penitenciária em Pernambuco. Em outras ocasiões, os chaveiros libertados escolhem seus sucessores. "Os chaveiros são um mal necessário, pois não temos efetivos suficientes", disse um diretor de presídio durante a visita.
"Chegado" de chaveiro conversando com presos na ala disciplinar do Presídio Agente de Segurança Penitenciária Marcelo Francisco de Araújo (Pamfa), no Complexo do Curado. Divulgação/César Muñoz Acebes/Humans Rights Watch
Em sua tese de mestrado publicada neste ano, a advogada Deise Benedito estudou o processo que ela chama de “favelização do Complexo do Curado”. Ela visitou o presídio pernambucano e identificou a presença dos chaveiros. “Cada pavilhão tem um chaveiro que fica com as chaves do pavilhão, e tem seus auxiliares conhecidos como ‘gatos’ que fazem o trabalho de apoio, trancando e destrancando as celas. São responsáveis pela segurança interna das celas, denunciam outros presos, internamente instalam ‘processos disciplinares’ entre os presos”, escreve a advogada.
Uma mulher que não quis se identificar, esposa de um detento da Penitenciária de Itaquitinga (PIT), na Mata Norte de Pernambuco, acusa o chaveiro do Centro de Observação e Triagem (Cotel), em Abreu e Lima, na Região Metropolitana do Recife, de ter determinado a transferência de seu marido. A mulher conta ter comprado uma televisão para seu companheiro, que foi tomada pelo chaveiro, além de roupas e o colchão. “Eu fui reclamar e ele disse que se eu fosse no pavilhão pegar minha televisão ele iria estourar minha cara de murro”, ela lembra. A relação entre o chaveiro e o companheiro dela seguiu estremecida a ponto do chaveiro ter pago R$ 1 mil para que o desafeto fosse transferido para Itaquitinga, segundo o relato da mulher. "Hoje em dia, quem bota as pessoas para Itaquitinga são os chaveiros pagando”, acusa.
Não é de hoje que a mulher tem que lidar com chaveiros. A denunciante diz ter pago R$ 2,5 mil por um barraco para o marido no Cotel. Ele ficou na unidade por cinco anos. A esposa conta que os barracos menores, com menos ventilação, são adquiridos por R$ 1,5 mi e afirma ter pago R$ 4 mil por uma cela em 2008 quando o marido estava no Presídio de Igarassu, no Grande Recife.
Uma mãe de preso que também conversou com a reportagem contou ter discutido com um chaveiro no Presídio Frei Damião de Bozzano, localizado no Complexo do Curado. “Eu disse para que ele não vendesse mais drogas para meu filho. Quando chegava o final de semana eu tinha que pagar R$ 1 mil, R$ 2 mil de dívida”. Segundo ela, os chaveiros estão sempre envolvidos e gerenciando o tráfico de drogas no cárcere.
De acordo com a coordenadora do Serviço Ecumênico de Militância nas Prisões (Sempri), Wilma Melo, o chaveiro tem sido responsável por promover castigos a presos. “Hoje reduziu muito a prática de tortura pelos agentes penitenciários, mas aumentou muito a ocorrência de espancamento e maus tratos pelos chaveiros”, ela afirma.
“Hoje o Sempri entende que a questão do chaveirismo chegou a um ponto que desestrutura o sistema”, completa Melo. Segundo a defensora de direitos humanos, o entendimento se baseia, principalmente, na situação de Itaquitinga. “O maior problema que a gente tem em Itaquitinga é com pessoas que de uma forma ou de outra prestaram serviço ao sistema penitenciário no espaço prisional, como chaveiro ou auxiliar de chaveiro”. Ela diz que hoje há uma disputa de poder na unidade e presos que estão insatisfeitos com a perda da legitimidade que em algum momento tiveram.
Chaveiros podem ter impedido o crescimento de facções no Estado
O pesquisador Eduardo Matos de Alencar acredita que a existência dos chaveiros pode ter contribuído para que facções criminosas não crescessem em Pernambuco, ao contrário do que ocorreu no Ceará e no Rio Grande do Norte. Negociando com presos, o reeducando conseguiria atenuar o sentimento de revolta na população carcerária.
"Não há um incentivo muito claro para ele [o preso] se rebelar e para ele ficar contra a gestão, que tem o chaveiro como mediador. Qual é o incentivo nesse jogo para o cara se faccionalizar? Para que o cara vai desobedecer? E o que ele vai procurar em uma facção se, dentro da prisão, se ele souber negociar, ele tem acesso a tudo, armas, drogas, mulher?", pondera.
De acordo com o escritor, o chaveiro ajuda a despressurizar as tensões no cárcere. Mas ele destaca: "Os chaveiros exercem poder coercitivo, metem porrada, praticam tortura, fazem tudo que agentes fazem, mas pior."
Alencar também destaca que o chaveiro não deve levar todo o mérito pelo não fortalecimentos de facções nacionais. "Nada em crime é monocausal. No auge da política de repressão qualificada, ali em 2012, não foi favorável para os traficantes de outros estados atuarem em Pernambuco", diz, citando um exemplo. O pesquisador acrescenta: “Eu acho que o Estado tem no chaveiro uma função que resolve um problema para ele e é um Estado que não quer investir em sistema penitenciário.”
A Secretaria Executiva de Ressocialização (Seres) recebeu uma série de questionamentos sobre a temática. Por meio de uma vaga nota, a pasta emitiu o seguinte posicionamento: "A Secretaria Executiva de Ressocialização informa que a exemplo de grandes comunidades, há nas unidades prisionais os representantes, porém reafirma o poder maior do Estado em todas as circunstâncias no ambiente prisional".
O LeiaJá tentou contato com o Sindicato dos Agentes de Segurança Penitenciária e Servidores no Sistema Penitenciário do Estado de Pernambuco (Sindasp-PE) para apurar, junto à entidade, uma visão sobre a questão dos chaveiros nas unidades prisionais. Porém, até o fechamento desta reportagem, não fomos atendidos.