Lançadas em momentos distintos, duas citações de um mesmo conto – A espera da volante, do Faca, de Ronaldo Correia de Brito – sugerem reflexão sobre estilo em literatura. A primeira, em evento, o autor da coluna reconheceu logo, era uma de suas preferidas. A segunda, tempo depois, foi lida por um professor, seguida de genérica afirmação, que “O Ronaldo tem uma escrita afiada, seca e muito original”. Este se referia a julgamento mais cuidado, considerando toda a obra do escritor? Porque, baseando-se no excerto que acabara de ler, que abre o livro, essa lâmina não parecia tanto nova, seca e cortante:
“A notícia merecia fé, mesmo tendo sido trazida por Irineia, doida varrida para todos, mas sempre tão sã para o Velho. A volante policial vinha vindo, deixando o rastro de gemidos e desfeitas. Os soldados buscavam apenas três homens, mas, no caminho, alimentavam sua fúria de perseguidores maltratando qualquer um que houvesse dado guarida, por inocência ou interesse, aos perseguidos”.
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Os itálicos foram aqui inseridos para rápidas observações: mesmo em trecho curto, há locuções, repetição de conjunções e outras construções enfáticas pouco sutis. E o autor preferiu não colocar uma vírgula possível após “perseguidores”, além de quebrar a frase “que houvesse dado guarida aos perseguidos”. Ou seja, o mesmo poderia ter sido narrado de maneira mais linear e objetiva, mais “seca” e “afiada” (se com essas palavras o professor argumentava que o texto ia direto ao ponto, com bastante simplicidade, sem floreios).
Nessas frases, pelo menos, não é possível encontrar o “mais estrito comedimento” apontado no posfácio de Davi Arrigucci Jr. Seria a escrita de Ronaldo Correia de Brito caudalosa, cheia de conjunções, advérbios, substantivos adjetivados, locuções, repetições, inversões e quebras? Ou o professor, teria lido um parágrafo pensando em outros? Ele apenas repetia coisas ditas sobre o autor de Faca?
Há também a questão da novidade. Espaço desta coluna não permite esclarecer detalhes do conto, mas ali não existe inovação temática ou formal. Enredo, personagens, cenário e modo de contar são convencionais. Assim como acontece em outra obra de Ronaldo – o premiado romance Galiléia – que teria dado “frescor” às histórias ambientadas no Sertão, “revolucionado” a literatura nordestina, e outras bobagens. Para justificar assertivas, os críticos e resenhistas apresentaram alegorias, referências bíblicas e a presença de elementos modernos nas paisagens, como motocicletas e lan houses.
Ora, poucas coisas são tão presentes nos sertões de nossa literatura quanto as alegorias e as referências bíblicas. E o tempo talvez não nos permita notar, naturalizou o uso, mas romances como os do pernambucano Gilvan Lemos traziam cidades que começavam a receber fios elétricos, refrigerantes, índios vestidos de shorts e tênis. Décadas adiante, provavelmente, os leitores não perceberão esses dados modernos que Ronaldo inseriu na narrativa, porque eles parecerão tão antigos quanto os utilizados por Gilvan.
Rigorosamente, nenhum enunciado é igual a outro, nenhum texto é igual a outro. A situação muda, tempo e leitores são diferentes, todos os elementos de contextualização da obra são variáveis. Nesse sentido, Ronaldo seria bastante original. No entanto, todos seriam, não haveria razão para lhe ressaltar a característica. O que geralmente a crítica busca é individualizar o autor, mapear o que lhe é característico, ainda que não seja através de alguma exclusividade temática ou formal. Daí, não raramente, os escritores findam encaixotados, rotulados e enviados aos leitores com clichês como essa “linguagem afiada e seca”, como o tal “domínio da narrativa”, ou a “ruptura com a literatura praticada hoje”(?).
A crítica tem se fetichizado mais celeremente do que as literaturas que acusa de pasteurizadas. Seus lugares-comuns e suas lentes viciadas desenham igualdades onde há diferenças, mesmo quando querem sublinhar o que existe de original nas obras. Suas tentativas de objetividade, seus métodos, toda a aparelhagem vai se consumando em umas sete chaves-mestras que teriam a capacidade de iluminar os textos. Hoje, mais do que para os escritores, é válido para os críticos aquele alerta de Borges, que “dizer demais uma coisa é tão inábil quanto não dizê-la inteiramente, e que a descuidada generalização e intensificação é uma pobreza”.
O recado soa oportuno para esta coluna, também e sobretudo, que tem generalizado a crítica e insistido em colocá-la em discussão. O preço para legitimar a proposta da Redor da Prosa é o olhar vígil, que as ressalvas sobre clichês não se transformem em lugares-comuns tão perigosos quanto, em outras muletas. E que, finalmente, a literatura seja ainda e sempre literatura, para além de todo esse joio. Arte, irredutível a breves citações.
Como a omissão não é pecado menos grave, contudo, segue ainda o primeiro trecho aqui lembrado do A espera da volante – cuja reflexão não chegaria descabida também se os temas fossem os que elencamos nos parágrafos acima:
“A vida do homem é perigosa, porque a morte se planta em lugares incertos. Andando, ele esbarra com ela, emboscada no meio do caminho. Parado, ela vem ao seu encontro, trajada em muitos disfarces. Há sinais que guardam a revelação do perigo. Viver é a ciência de decifrar sinais”.