Periferia em depressão e a epidemia dentro da Covid-19
Sem visibilidade, a pandemia ultrapassou a frágil condição financeira e aumentou os pedidos de socorro por acompanhamento psicológico nas comunidades
Ao alcançar a realidade que mais caracteriza a desigualdade social no Brasil, a crise da Covid-19 reafirmou o histórico de abuso psicológico à população periférica e espalhou uma 'epidemia' de depressão nas comunidades. Frente ao desinteresse do poder público em ampliar o atendimento especializado nas favelas, populares se aglomeram na margem do arranjo socioeconômico enquanto tentam se defender dos impactos mais agressivos da pandemia. Sobrecarregados desde a infância, a renda mensal sempre foi insuficiente, mas o pouco cada vez mais se aproxima do nada.
Sem oportunidade, a pressão de alimentar a família e se deparar com a geladeira vazia, incapacita e dói, mas a perda de mais de 279.286 familiares realça o sentimento de solidão em todo o País. Uma pesquisa divulgada pela Ipsos aponta que o Brasil é o país que mais sente solidão. De acordo com o levantamento, metade dos mil entrevistados declarou se sentir sozinha e 52% disseram que o sentimento aumentou nos últimos seis meses.
A condição de exclusão ficou ainda mais evidente nesse pouco mais de um ano de pandemia no Brasil. Enquanto o vírus apela pelo reforço da higiene, o fornecimento de água ainda é precário. Enquanto a orientação sobre os métodos de prevenção é fundamental, a periferia ainda se vê vulnerável pela falta de educação sanitária. Empurrados para o contágio em um transporte público superlotado, a falta de controle financeiro é remediada com empregos informais. Ao passo que os recordes de mortes são atualizados diariamente, a fila por leitos de UTI tornou-se parte de um cenário onde a gravidade tenta ser abafada e a mente de quem não sabe como reagir à doença batalha consigo por soluções.
Sem a escuta psicológica adequada, pouco a pouco a 'autodesvalorização' amarga e aumenta os índices de alcoolismo, violência doméstica, dependência química e nas recorrentes tentativas de suicídio. Na comunidade de Chão de Estrelas, no bairro da Campina do Barreto, Zona Norte do Recife, o braço social do Maracatu Cambinda Estrela (1935) funciona há 21 anos como um centro de acolhimento onde "o medo de não poder ter um amanhã" é afastado. Junto aos demais voluntários, a presidente do projeto, Wanessa Santos, reconforta os populares em meio à crise psicológica.
Ela lembra que as pessoas "começaram a se perder" logo nos primeiros meses da Covid-19. Por isso, montou uma frente com nove representantes de outras organizações para arrecadar alimentos e beneficiar mais de sete mil famílias. "As pessoas ficaram sem emprego, perderam suas rendas, adoeceram e perderam também seus entes queridos. Eu vi adolescente perdendo mãe e avô. A gente viu mãe perdendo os filhos. Desse início, até então, as pessoas vêm passando por surtos de ansiedade, medo, crises, pânico e, inclusive, chegaram situações para a gente de pedidos de socorro porque queria cometer suicídio", recorda a coordenadora, que classifica o Maracatu como "um grande quilombo com uma forte relação familiar" que estende o sentimento de união para comunidades vizinhas.
A condição delicada de Chão de Estrelas poderia ser revertida com mais apoio público, destaca Wanessa/Arthur Souza/LeiaJáImagens/Arquivo
Com a cesta básica nacional em R$ 696,71 -valor superior ao repasse do auxílio emergencial-, a projeção do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE) fixa o salário-mínimo ideal em R$ 5.495,52. Em janeiro, 12,8% dos brasileiros - equivalente a 27 milhões de pessoas - estavam na linha da miséria, ou seja, viveram com menos de R$ 246 mensais, aponta a pesquisa da Fundação Getúlio Vargas (FGV) com dados das Pesquisas Nacionais por Amostra de Domicílios (Pnads) Contínua. Com a suspensão do benefício em meio à piora da pandemia, a falta de comprometimento do poder público é amplificada pela baixa oferta de atendimento psicológico. "A gente tá vivendo um momento de extrema dor, muitas perdas, muitas mortes e uma falta de perspectiva futura", afirma a presidente do Conselho Regional de Psicologia de Pernambuco (CRP-PE), Alda Roberta Campos.
"Nem é um problema religioso, nem é falta de força de vontade, nem a pessoa escolheu tá deprimida. Depressão é uma doença que vai precisar de um suporte psicológico, muitas vezes de um suporte médico também, de uma equipe multidisciplinar que possa ajudar essa pessoa a se cuidar", destacou a gestora, que acrescentou, "as desigualdades vão se destacar nessa situação. Quando você tem a possibilidade de uma reserva emocional, financeira, de segurança profissional, isso permite que você seja menos atingido".
Apesar de compreender que o atendimento descentralizado oferecido pelo Sistema Único de Saúde (SUS) é um modelo para outros países, ela divide o sentimento de que falta mais compromisso com o sistema. De acordo com a Secretaria de Atenção Primária à Saúde (SAPS), do Ministério da Saúde, em dezembro de 2019 - às vésperas da pandemia no Brasil -, o Sistema de Informação em Saúde para Atenção Básica (SISAB) registrou 229.851 atendimentos no SUS para depressão e ansiedade. Um ano depois, já com a crise instalada, 302.060 atendimentos foram realizados. Em Pernambuco, os dados saltaram de 7.660 para 10.309 no mesmo período.
Alda pede atenção para diferenciar a tristeza das perdas da pandemia com um quadro mais sério de transtorno/Júlio Gomes/LeiaJáImagens/Arquivo
"O Brasil tem uma rede de atenção psicossocial. Cada município precisa ter essa rede, que é formada pelos Centros de Atenção Psicossocial (Caps), pelos centros de convivência e por espaços de cuidado onde a população pode acessar", explica Alda Roberta. A Secretaria de Saúde do Recife (Sesau) disponibiliza 17 Caps - com quatro destinados às crianças e adolescentes -, que seguem abertos para atendimento individual mediante agendamento. A pasta comparou os meses de janeiro de 2020 e 2021, e não identificou aumento de demanda psicológica. Contudo, a queda de 21,6% na fila de espera por consultas foi observada.
Em uma aposta para democratizar o acesso ao acompanhamento profissional, desde maio do ano passado, a Coordenação de Saúde Mental do município passou a oferecer teleatendimento através do aplicativo Atende em Casa. Mais de três mil pessoas foram ouvidas pela equipe multidisciplinar do programa, estima a Prefeitura, que também posiciona 20 equipes de profissionais de sete especialidades no Núcleo de Apoio à Saúde da Família (Nasf) para dar expansão ao suporte.