'Capoeira gospel' gera debates sobre apropriação cultural
Movimento tem crescido entre os evangélicos e vem dividindo opiniões entre os capoeiristas tradicionais por causa das raízes afrobrasileiras da arte
Até meados do século 20, capoeira era assunto de polícia. Os praticantes eram perseguidos, presos, tidos como marginais e precisavam praticá-la escondidos, em virtude de sua proibição. Hoje, a capoeira é reconhecida como símbolo identitário da cultura afrobrasileira, tendo sido, inclusive, tombada como Patrimônio Imaterial da Humanidade, pela Unesco.
Com o passar dos séculos, a capoeira subdividiu-se em alguns estilos. Os principais são a Angola e a Regional e, agora, um ‘novo’ tipo de capoeira, a gospel, vem ganhando espaço e adeptos entre os fiéis da religião evangélica. Sendo usada como instrumento de evangelização, a Capoeira de Cristo tem dividido opiniões entre os capoeiristas mais tradicionais que alegam uma apropriação cultural das tradições de matriz africana.
‘Capoeira, ora por mim’
"Salve, capoeira! A paz do Senhor". Assim se cumprimentam os capoeiristas antes da roda começar. Atabaques, pandeiros e berimbaus entoam o que parece ser uma 'ladainha' mas, na verdade, o que se ouve é um louvor cristão. O grupo Capoeiristas de Cristo, da cidade de Olinda, trabalha há 18 anos usando a capoeira como instrumento de evangelização. Eles garantem praticar a mesma capoeira feita em qualquer outro lugar, sem mudar suas tradições.
Pastor Jorge Santana, o Mestre Papa-Légua, é o responsável pelo grupo pioneiro no Estado. Praticante há 32 anos, convertido há 18, ele explica o que é a Capoeira Gospel: “Nós não somos mais capoeiristas. Eu sou um pescador, e a capoeira é a isca para atrair os jovens.” O mestre garante ensinar a mesma capoeira praticada em qualquer outro lugar, mas com algumas adaptações.
As músicas não podem mencionar algo que remeta ao candomblé, e a graduação dos alunos é feita a dois níveis: espiritual - o praticante precisa aprender alguns versículos da Bíblia para passar de nível - e o físico. Papa-Légua afirma que, além do cuidado com o corpo, através do esporte, a busca, em seu grupo, é pelo “cuidado com o humano”, afastando os jovens das ruas e das drogas.
Sobre as acusações de apropriação cultural, o mestre é taxativo: “A capoeira não tem religião. A religiosidade existe em mim, não na capoeira”. Ele até menciona o célebre Mestre Bimba, ao dizer que: “Na Capoeira Regional, você vê que já não tem muito o místico. A capoeira contemporânea é mais esporte mesmo”. José Paulo da Silva, o Mestre Duvalle, capoeirista há 43 anos, endossa: “As pessoas colocam que a capoeira tem coisa com o Candomblé e a Umbanda, mas isso não tem nada a ver. Isso é muito arcaico, as pessoas deveriam primeiramente conhecer a arte e a cultura.” Demonstrando não concordar com a discussão, o Mestre Papa-Légua é conclusivo: “Quem faz essa polêmica quer apenas uma pretensão para discutir, mas não vemos nisso uma problemática. Capoeira é capoeira, religião é religião.”
‘De Angola veio no navio negreiro’
"Para mim, a capoeira é um ritual. Desde a música, desde quando a gente está no salão treinando, na roda...". Quem fala é Eduardo Albuquerque, o contramestre Baygon. Ele é capoeirista angoleiro, professor na Escola de Capoeira Angola, localizada no centro do Recife, onde desenvolve o trabalho iniciado pelo Mestre Cláudio, do grupo Angoleiros do Sertão. Praticante desde 1988, Baygon se refere à capoeira com reverência: "Para mim é uma filosofia de vida. Ela me faz viver mais, me faz ser feliz. Eu vivo capoeira".
O contramestre garante não ser contra o movimento da capoeira gospel, mas afirma que a ancestralidade tem um valor que não pode ser ignorado: "A gente vem de matrizes africanas. Eu não vou esquecer de onde eu vim, eu tenho que levantar minha cabeça e dizer: 'eu sou angoleiro'. Eu prezo pela raiz".
Sobre as adaptações feitas para a prática no meio gospel - como mudanças em alguns fundamentos e músicas - o capoeirista se posiciona: "A capoeira não pode perder sua musicalidade tradicional. Cada canto tem um significado, a música da capoeira é muito forte no jogo". O professor também comenta sobre o uso de cordas que indicam a graduação do aluno e que são recebidas no 'batismo' da capoeira regional, termo refutado entre alguns praticantes evangélicos: "A corda representa as cores dos orixás, então, como é que vão mudar isso?".
Já para 'Speedy Gonzales', o capoeirista Eudes Marques, aluno da escola de Baygon, o uso da capoeira em outros contextos é algo natural: "É muito difícil manter a tradição da capoeira em um mundo moderno como o de hoje. É uma tradição muito antiga e vai se renovando com o tempo". Para ele, o importante mesmo é manter a prática: "Sempre é a capoeira na frente, não importa se é regional, se é gospel ou angola".