É voz corrente entre os analistas políticos que o PT tem um projeto de poder, mas lhe falta um projeto de governo.
Partido criado de baixo para cima, foi conquistando o poder, também, de baixo para cima: municípios, estados e a Presidência da República. Descontada a bravata como forma de sensibilizar o eleitorado, o discurso do PT encarnava a opção evangélica de preferência pelos pobres (sem muita clareza quanto à multiplicação dos pães), um moralismo fundamentalista e uma condenação inapelável aos métodos arcaicos da realpolitik brasileira.
A verdade é que o PT foi chegando ao poder e mudando. A princípio, a mudança pouco perceptível ao eleitorado nacional porque diluída entre cinco mil municípios e vinte e sete estados. Na Presidência da República, a conversa é outra. Em Brasília, a casa do poder é de material transparente; bem ou mal a nação inteira presta atenção ao que acontece; bem ou mal a mídia se curva ao poder incontrastável de sua excelência os fatos.
O que se percebe é o seguinte: governo não opera (à exceção do manejo da macroeconomia e da prática do pecado da gula fiscal); Lula carrega nas costas da biografia e da personalidade carismática – capital perecível, porém resistente – o peso da pífia gestão e das promessas irrealizadas, mantendo bons índices de aprovação, ainda que cadentes. Por enquanto, o presidente é a âncora do governo.
No entanto, o núcleo duro do governo, como se convencionou chamar quem manda no pedaço, executa a montagem e a execução de um projeto de poder com – diga-se de passagem – irrepreensível competência.
Comecemos pela arregimentação dos recursos políticos traduzidos pelo crescimento extraordinário da base parlamentar. Digamos que não é um feito inédito. Outros governos também o fizeram, mas o PT tem duas peculiaridades: preservou a “pureza” do partido e não teve o menor constrangimento em lotear posições, permitindo que raposas tomassem conta de galinheiro e vampiros, dos bancos de sangue.
No item arregimentação de recursos financeiros, engordou os cofres do partido com a tomada do aparelho de estado pela militância (vinte e uma mil nomeações para cargos comissionados com o correspondente dízimo) e mantém uma articulação, tipo conúbio⁄Delúbio, com os interesses empresariais.
Em matéria de comunicação governamental e propaganda política de modo a arregimentar a opinião pública, a estratégia do governo é avassaladora. Além de centralizar todos recursos nas mãos de um Ministro (o Ministro da propaganda formal ou “Ministro da Verdade”, Gushiken), arma-se uma gigantesca operação de crédito, o pró-mídia, para socorrer as empresas de comunicação em dificuldades. Até aí nada demais, o risco é cair naquilo que, insuspeitamente, Dr. Octávio Frias, do alto da autoridade de quem dirigiu a Folha de São Paulo por quatro décadas, afirmou na sua entrevista de 21-10-03, concedida a AOL: “Por que criar um sistema assistencial, preferencial para os jornais, para mídia? Por que? (...) O que interessa ao governo é a mídia de joelhos”.
Todo mundo sabe, porém, que sem crescimento econômico, emprego e aumento de renda, qualquer governo está condenado à impopularidade e o projeto de poder fadado ao fracasso.
É fundamental, pois, encenar o espetáculo do crescimento. A economia em alta é o mais eficiente dos cabos eleitorais.
Ao invés do crescimento econômico sustentado, vem por aí o truque. O truque que pode ser um estelionato como foi o plano Cruzado.
Mas o parangolé está bem ensaiado. O truque consiste em embebedar o trabalhador e suas famílias com um porre de crédito e consumo, seguido pela ressaca do débito e do arrependimento tardio.
Tem crédito para tudo e todos os gostos para a felicidade geral da banca que terá sua liquidez garantida pela tradicional adimplência dos pobres ou pela consignação na folha de salários.
Os gestores do Planalto contam, em 2004, com a natural recuperação da economia que bateu no fundo do poço e com uma conjuntura internacional provavelmente favorável: economia americana com crescimento previsto de 3,7% do PIB e as economias européia e japonesa com algo acima de 1,5.
Neste sentido, é importante não perder de vista o que diz Paul Krugman: “Estimular a economia no curto prazo é supostamente fácil, desde que você não tenha de se preocupar muito com o volume de dívidas que contrai no processo”.
Pena que a grande maioria dos chefes de família brasileiros não tenham acesso aos ensinamentos do Professor da Universidade de Princenton.
*Este artigo foi publicado em 30 de dezembro de 2003 na Folha de São Paulo.