Quarta, 02 de abril, cedinho, renovo o hábito: a leitura dos jornais. No Caderno C do Jornal do Comércio, a manchete - MORRE O ESCRITOR CLÁVIO VALENÇA - apunhala traiçoeiramente o cantinho onde guardo os bons sentimentos.
Sabia que sua saúde vinha abalada, fazia algum tempo, mas desconhecia o agravamento das últimas semanas; estou farto de saber que a morte é amiga da velhice e chega devagarzinho com os sinais de cansaço, a companhia das dores e as marcas das perdas; e mais, depois de certa idade, o caminho é um vale de lágrimas esculpidas em lápides até que chega a nossa vez.
A verdade é que não passa uma semana sem que saudades se inscrevam em nossos corações. Ainda bem que a saudade congela o tempo e conserva a lembrança. Clávio, a partir de hoje, o tempo parou, continuamos a nos ver e a querer bem um ao outro.
Em relação a Clávio, não vale a acrimônia de Machado de Assis: "Está morto: podemos elogiá-lo à vontade". Dele, não era eu dos mais próximos; cada um no seu canto, mas em cada canto e mesa de bar compartilhada, em jornadas boêmias, projetavam-se luzes interiores que nos faziam fraternos. Virtude dele que tinha, sem querer e sem saber, visgo (de jaca? Podia ser desde que fosse de São Bento do Una). Era um visgo de outra natureza e que se revela na dimensão dos dotes espirituais: gentil, cavalheiro, leve e encharcado pelo bem da família Valença que se manifesta na imaginação poderosa, inteligência sensitiva, emocional, sempre pronta para a tirada de humor refinado e uma ironia, acreditem, inofensiva porque jamais dirigida às pessoas.
Sempre que o encontrava, ao lado da dedicada e amorosa Iana (esta eu conheço desde a adolescência, filha de "seu" Lauro, moça bonita e educada e que fazia parte de um prole numerosa, precocemente, órfãos de mãe), perguntava: "A saúde, como vai?" E vinha a resposta espirituosa: "O doutor liberou uma dose de de uísque, dia sim, dia não, e eu pedi para acumular créditos das doses não tomadas para o fim de semana" (risos). Ou então, porque sempre admirei o estilo da prosa fluente e dos textos saborosos, : "Clávio, escreva mais. Dê este prazer aos seus leitores". Ele respondia com um riso encabulado, mas seguro de que só escreveria quando lhe desse na telha.
A propósito, foi a poderosa imaginação de Clávio que gerou uma obra surrealista - Dona lili do Grão-Pará - uma biografia desautorizada, amparada numa espécie de realismo mágico da vida boêmia, misturada com histórias anárquicas do universo mundano do Recife onde ele introduziu Lili, personagem inspirada na Lilly do bloco carnavalesco Nem sempre Lily toca flauta, de origem lituana, mas, de fato Lili era uma cidadã do mundo e que se adaptara às circunstâncias da vida profana da zona do meretrício e das aventuras/desventuras das casas da luz vermelha. O livro foi lançado no Pátio São Pedro no dia 25 de janeiro de 2001.
Em 2010, Clavio lançou o livro de contos Interioranos (Comunigraf Editora). São treze contos de quem sabe contar história fincada nas raízes culturais da vida simples das pequenas localidades, delas, porém, universalizando valores e a crítica social, atributo do grande autor.
Neste ponto, cedo a palavra aos mestres no assunto. Eis o que disse Garibaldi Otávio: "Ninguém precisa morar em São Bento do Una para entender o mundo. Mas compreenderá bem mais a complexidade da vida humana conhecendo pessoas como as que habitam as páginas deste livro".
Do Professor Nelson Saldanha: "Sua prosa é fácil e fluente, sua narrativa espontânea e sem maiores complicações. Verossímil, embora não banal, descritiva mas não isenta de psicologia".
Do grande Raimundo Carrero, vem o testemunho de que Clávio "Não é apenas um pessoa que escreve". É, segundo ele, um escritor, o escritor não some. Marca. E explica: "Assim tem sido o trabalho deste escritor que se construiu pela reflexão e, para revelá-la, foi em busca da Beleza".
Pois é, naquela mesa ele vai faltar e vai doer demais.