Gustavo Krause

Gustavo Krause

Livre Pensar

Perfil: Professor Titular da Cadeira de Legislação Tributaria, é ex-ministro de Estado do Meio Ambiente, dos Recursos Hídricos e da Amazônia Legal, no Governo Fernando Henrique, e da fazenda no Governo Itamar Franco, além de já ter ocupado diversos cargos públicos em Pernambuco, onde já foi prefeito da Capital e Governador do Estado.

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Lágrimas de Pierrô

Gustavo Krause, | qui, 06/03/2014 - 10:50
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Quarta-feira de cinzas é um dia triste. Devia amanhecer sempre sob chuva torrencial para lavar corpos e almas que se entregaram aos apelos mundanos do carnaval. É dia de ressaca orgânica da viagem ao êxtase da fantasia e, na tradição cristã, é o momento de elevação espiritual porque simboliza a fragilidade da vida. Assim, cessada a chuva, seria celebrado o encontro do sol interior com o sol da natureza.

 

Como não brinco o carnaval na terça-feira gorda (acredite quem quiser), começo a quarta de cinzas, bem cedo, com os pensamentos em caminhada pelo Parque da Jaqueira. Este ano, na entrada que fica do lado da Av. Rui Barbosa, dei de cara com um resto de carnaval: o pierrô encolhido no banco da praça, abraçando as próprias pernas que davam sustentação à cabeça.

 

Ele chorava copiosamente. O primeiro impulso foi respeitar a solidão da tristeza; o segundo impulso foi consolar aquela alma penada que, supus, estava de coração partido por causa de uma colombina. Aquela lágrima desenhada no rosto triste do pierrô, cristalizada como um pingente, se transformara numa catarata de sentimentos incontidos.

 

Cedi à convicção de que o pierrô, personagem herdado da commedia dell´arte do teatro popular italiano, sofria da cornice universal da traição amorosa. No entanto, estranhei as cores da fantasia: o preto e o branco deram lugar ao verde/amarelo.

 

Fui direto ao ponto: - Por que tanto choro e tanto sofrimento, amigo pierrô? Você já sabia o fim do enredo: arlequim se aproveitaria de sua ingenuidade, de sua crença na bondade humana, e a colombina já era. – Não choro por colombina – balbuciou, sem levantar a cabeça, e entre soluços, completou – choro pela pátria amada, Brasil.

 

Surpresa! Refeito, argumentei que contivesse aquela angústia contagiante. – O Brasil, florão da América, é hoje uma das dez maiores economias do mundo; moeda estável; 40 milhões de brasileiros incorporados ao mercado de consumo; as instituições democráticas funcionando livremente e...

 

Senti que ele não queria ouvir e desatou a falar. – Choro pela impunidade. A sabedoria popular tem razão: nada como dias atrás de outros e um Toffoli no meio. E o que dizer da teoria da chavasca que desquadrilha a quadrilha e abre alas para o bloco dos sujos passar? Tem mais: o cara que tem cara de artista de cinema mudo, contracenando, em terreno lodoso, com outro canastrão que mais parece galã de novela mexicana, liquidam a esperança do “Moleiro de Sans-Souci” segundo a qual “ainda existem juízes em Berlim”.

 

Tentei contra-argumentar, mas o pierrô não interrompeu a catarse. – Que economia? A do pibinho? Atrás dos emergentes, do Chile, do Peru, da Colômbia? O Brasil do 85º lugar no IDH? O Brasil da segunda pior distribuição de renda em ranking da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE)? O Brasil de baixíssima produtividade que compromete a capacidade de competir no mercado globalizado? O Brasil cujo Estado monstruoso nós carregamos nas costas e nos devolve ineficiência generalizada na prestação de serviços? O Brasil da infraestrutura estrangulada? Da contabilidade maquiada? Das contas externas desequilibradas?

 

O Pierrô fez uma pausa para respirar, aí aproveitei. – Houve grandes avanços: a redução de taxa de mortalidade infantil, o aumento da expectativa de vida, universalização do ensino... Fui interrompido abruptamente. – Choro pelos 50 mil mortos por homicídio doloso todo ano e, por favor, não me venha falar em educação: segundo o Relatório de Capital Humano do Fórum Econômico Mundial, o Brasil ocupa o 88º lugar entre 122 países e, na qualidade do ensino de matemática e ciência, tem o 15º pior desempenho do mundo. Na avaliação do relatório PISA, entre 65 países, o Brasil obteve o 55º lugar em leitura, 58º em matemática e 59º em ciências. Sem falar no silencioso e perverso analfabetismo funcional: muita gente sabe ler, chega a ter diploma, mas não entende o que lê.

Concluí: seria inútil o esforço para aliviar a dor patriótica do Pierrô. Sugeri uma saída amigável e poética: - Vamos “tomar vermute com amendoim” como receitava Noel Rosa em “Pierrô Apaixonado” para “romper a esfera dos astros”, proposta de Manuel Bandeira em “A Canção das Lágrimas de Pierrot”. Ele aceitou. – Seu nome? – Apenas, pierrô .

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