- Vou morrer. Reuni a família e fiz este comunicado sem dramas ou lamúrias. Com surpresa e preocupação, veio a pergunta: - Pai, é doença incurável ou suicídio anunciado?
- Nem uma coisa, nem outra. Vou praticar a “morte técnica”. E explico. Estou saudável; nem quero sair da vida voluntariamente. A vida é, apenas, um intervalo entre o nascimento e morte, mas vale a pena ser vivida. – Então por que esta história de morte técnica? Indagou, assustada, a primogênita.
- Eu não sou eu, nem você é você; nós somos números, códigos, senhas, papéis, certidões, uma miríade de consumidores idiotas e contribuintes assaltados. Aliás, o último dia de abril, fim do prazo para a declaração do imposto de renda deveria se tornar (já que tem dia de tudo) “o Dia Nacional da Tunga”. Tiram da gente e não chega para quem devia. Vai alimentar a canalha corrupta.
- Calma, pai! Ponderou o único varão. – Sosseguem. Estou absolutamente tranqüilo. E tá tudo planejado. A morte técnica é o caminho. Tentei ser um Indivíduo Não-Governamental (ING). Consegui em parte, mas ninguém se livra totalmente deste mal cada vez mais desnecessário, chamado governo, que perde a “Guerra dos Mosquitos”; apanha dos bandidos; mata o doente pobre na fila dos hospitais, então... Tentei ser um “Cidadão Informal”. Impossível. O “Big Brother” não deixa. Câmeras e escutas estão em todo canto para bisbilhotar a vida de gente honesta porque os criminoso impunes estão em toda parte. A burocracia é a indesejável companheira do berço (registro civil) ao túmulo (atestado de óbito). O nosso sistema financeiro é o mais moderno do mundo. Tente, por exemplo, depositar um dinheirinho a mais em espécie. É bronca! Agora, meta a mão em milhões e mande o dinheiro para os paraísos fiscais. Legal! Ah! Os bancos. Um boa tarde, um sorrizinho de atendente bonita, água, minha netinha, para o velho pensionista... Azeite quente das tarifas senhor velho, as mais altas do mundo em concubinato com o logro do empréstimo com desconto em folha, lascando os aposentados e enchendo a burra da banca e dos bacanas que inventaram a arapuca. E por falar em tarifa, um amigo caiu na besteira de deixar 600 reais numa conta bancária inerte (inerte para ele); cinco meses depois estava no vermelho em 70 reais. Mandou cobrir o “saldo devedor”. Tarde demais. Seu limpíssimo nome estava aonde? No SERASA.
- Tudo bem, pai, mas o que é “morte técnica”? Insistiu a impaciência da caçula. – É o seguinte: vou fazer uma viagem de balão tal qual o Padre paranaense (coitado, morreu de leseira). O balão vai desaparecer de mentira. Vocês farão o drama. Mídia, o escambau. Krause está desaparecido e morto (para tristeza dos amigos e alegria dos inimigos). Fato público e notório, vocês conseguem um atestado de óbito. Deixe estar que o balão tem destino certo: uma ilha na Bahia (a Utopia do Século XXI) onde ninguém trabalha. Lá todo mundo se chama Domingos e o grande amigo que vai me acolher por um ano é o Domingão, personagem atualizado de Robinson Crusoé, o Sexta-Feira. Não deixarei débitos; não tenho seguro de vida, sequer a pendência do inventário: o que tem, já está no nome de vocês. Morri. Libertei-me de tudo. Morri tecnicamente; morri para o mundo formal, o mundo da aporrinhação, da maldita burocracia, dos códigos; a minha morte é libertação do ser de papel cujo nome é um número. Ressuscitarei no tricentésimo sexagésimo quinto dia, em carne e osso, e voltarei para vocês.
- Pai, agora você endoidou de vez, disseram os cinco a uma só voz, como se fosse um coro ensaiado; como é que você vai viver? E sobreviver? E o Plano de Saúde? Antes que prolongassem as perguntas do mundo dos “vivos”, entrei de dois pés: - Estarei morto! Meu único documento será o atestado de óbito que, no Brasil, vale mais do que o cadáver. Não esqueçam: estou tecnicamente morto e fisicamente vivo. Carteira de identidade? Estou morto. Plano de Saúde? Preencher formulários? Atestado de óbito na cara do funcionário, perplexo, porém vencido pela força do papel que é muito mais importante do que a pessoa. Fiquem tranqüilos! Vai dar tudo certo.
E deu certo. Um ano depois, passei a viver minha morte técnica. Uma beleza. No começo, surpresas. Um grande jurista pernambucano deu um parecer notável; defendeu brilhantemente a tese da morte técnica; noveleiro, o jurista comparou minha conduta a de Marconi Ferraço, o ex-vilão da novela Duas Caras, recuperado pelo IBOPE. No meu caso, o parecer demonstra que não houve fraude, tampouco a nova vida do “morto técnico” causou, nem causará danos.
Livre. Liberdade absoluta que só a morte proporciona me fez viver o melhor dos mundos: mesadinha garantida pela família para as necessidades básicas; um charutinho de vez em quando; os amigos, contentes; os inimigos, putos da vida; as burocracias, derrotadas. Todos se renderam à realidade do atestado de óbito ao qual anexei o parecer do grande jurista.
Do mundo dos vivos, somente duas coisas continuaram a fazer parte da agradável rotina: o endereço na internet (morto@mortotecnico.com); um trabalho leve para ganhar uns trocados – o de Ghost Writer (fantasma que escreve, sob encomenda, para os outros) – trabalho que já ocupa, hoje, grande parte do meu tempo.
Antes que eu esqueça: trocados sem recibo, afinal de contas estou morto e os mortos não pagam impostos.