Ele chega mansamente. Suavemente. Sem zoada. Sem barulho. Silenciosamente. O oposto do que lhe deu grandeza universal.
Ele chega vestido com a túnica majestática da nossa ancestralidade: a pele negra da mama África.
Ele anda na pista circular do Parque da Jaqueira como fazem milhares de pessoas, obedecendo à prescrição da vida saudável em tempos de estresse, sedentarismo e maus hábitos que condenam corpo e alma ao tormento das doenças.
Ele é um ser único. Um fenômeno a desafiar as funções convencionais dos sentidos. Ele escuta com os olhos e vê com os ouvidos.
Caminhando, os pés roçam no chão: a fricção é um som e uma inspiração. O vento bate no rosto: a carícia da brisa é um som e uma inspiração. O sol crepita no lombo: é um som e uma inspiração. A respiração acelera, o coração bate mais rápido, a folhagem das plantas farfalha, os pássaros chilreiam, nele, então, a fusão do olhar e do escutar compreende que a vida é ritmo e som (melodia e harmonia vêm depois); ritmo e som que começam no aconchego da vida uterina com o batuque de dois corações e, no primeiro ato, nascer, o vagido, som inaugural do humano, é um misto de saudade da plenitude e medo do desconhecido.
Menino, as mãos buliçosas catavam caranguejo nos mangues e não deixavam em paz panelas e caçarolas. Tanto bateu que o pai, tocador de manola (violão de quatro cordas) na boate da sede do Bloco Batutas de São José, deu ao garoto de 11 anos um bongô, umas maracás e um afoxé. Mal sabia Pierre, o marido de Petronila, que entregava ao filho um passaporte para que ele ganhasse o mundo. Quase metade da vida, viveu fora do Brasil. Os primeiros passos do imigrante negro e pobre revelaram o talento brasileiríssimo da bendita esperteza quando está em jogo a sobrevivência. Predestinado, ele literalmente ganhou o mundo e mundo enxerga nele um gênio da percussão.
O guitarrista Pat Metheny o chama de Doctor. O percussionista indiano Trilok Gurtu o reverencia como o Paxá. A revista Down Beat, dedicada ao jazz, em oito votações (Grammy, oito premiações), classificou-o como “o melhor percussionista do mundo”. Porém, a referência que melhor define o artista vem do cineasta italiano Bernardo Bertolucci que não admite que o chamem de músico, mas sim de “A Música”.
Quem conhece a trajetória, a obra e assistiu à apresentação de “4 elementos” do autodidata que diz “eu sempre procuro mostrar o potencial visual que existe na música, nos sons”, confirma a singularidade do ser que escuta com os olhos e vê com os ouvidos.
Vai além, dá razão à síntese de Bertolucci que dispensa adjetivos e mata a charada: Juvenal de Holanda Vasconcelos, pernambucano do Recife, é o nome de batismo de Naná Vasconcelos, que dona Petronila encurtou de “Juvenár” e, com a linguagem afetiva de mãe, o manhês, chegou a Naná, uma forma especial de prosódia, ritmo na fala, repetição de sílabas, repleta de eufonia, como se fosse a premonição de um destino que, longe de ninar, é canção de “Nanar”, o batuque/mensagem do despertar.
Homenageado no carnaval passado (2013) e agraciado no grau de Grã-Cruz com a medalha da Ordem do Mérito dos Guararapes pelo governador Eduardo Campos, o comendador Naná mantém sua rotina com autêntica humildade; chega no Parque da Jaqueira, silenciosamente; aos sábados, senta no meio-fio, recusando a oferta da cadeira, mas aceita com muito gosto duas ou três cachacinhas que a turma reparte; com muito senso de humor, olhar plácido, não contém o riso largo quando alguém lembra algumas de suas frases antológicas: “Fama está na cabeça, na cabeça de camarão”, ou, para quem pensa que ele é gay ou bissexual: “Sou casado e nunca dei meu ‘alterador de fava’, mas não tenho nada contra. Adoro meu lado feminino e gosto muito de mulher”.
Em certa medida (e não na medida certa) reconhecido, a verdade é que Pernambuco e o Brasil precisam conhecer Naná. Mais de perto.