Morreu no Rio de Janeiro, em data incerta, por motivos vários, o “gênio da raça” Chico Buarque de Holanda. Aquele que foi quase-quase a única unanimidade nacional, bateu as chinelas, vestiu pijama de madeira (de reflorestamento), soprou derradeiro chiado. E, em seu lugar, ficou o bode!
Os autores desse sumiço são vários, quase todos do meio literário, sendo a maioria companheiros de geração de Chico. As ferramentas utilizadas foram e-mails, blogs, redes sociais, maledicências em mesas de bar e outros tantos metais cortantes – todos com “mecanismo de tesoura”.
Os olhos azuis, que deixaram agoniadas umas 35.129.392 moças, agora estão cinzentos e imóveis. Suas canções, que tocaram bonde das histórias dos brasileiros por quase cinco décadas, agora são tema secundário. Importa é fazer do seu velório uma oportunidade para que muitos possam dar nome às próprias mágoas e frustrações. Importa é alimentar o bode!
Sim, o falecido era culpado das acusações: não era romancista brilhante, a qualidade de seus livros nem resvalou nos inúmeros clássicos da MPB que compôs; foi extremamente bem tratado pela mídia e recebeu um marketing espalhafatoso do mercado editorial; e ganhou prêmios, muitos – até quando perdeu.
Ocupando seu espaço neste nosso mundo de Deus e mais um cabido de diabos, ficou o bode. Expiatório. Ruminando. Lembrando-nos que, se Chico não foi escritor estupendo, também não estava abaixo de dezenas de outros que são considerados destaques na literatura brasileira contemporânea (porque a maioria é só isso mesmo: razoável); recordando-nos que ele era apenas mais um entre tantos com lugar privilegiado nos cadernos culturais e planos de divulgação das editoras; ratificando que prêmios literários sempre foram (e continuarão sendo) contestados.
Mas o bode precisa entender que o filho de Seu Sérgio e sobrinho de Seu Aurélio calhou de se tornar escape freudiano inigualável: rapaz de família classe média, de intelectuais respeitados, bonito, charmoso, politicamente engajado, Chico Buarque deveria ser o brasileiro excelso, assim como o Brasil cumpriria seu papel de “País do futuro”. Agora, em nação emergente, enquanto mundo se esfarela em crises, ele poderia estar acima das imensas contradições e mediocridades que nossa sociedade mantém.
Ele não foi tudo o que sonhamos, assim como nós também não conseguimos ser. Espelho da genialidade e da beleza as quais aspiramos ontem, e das fragilidades políticas e culturais que ainda carregamos – algo natural em tão jovem democracia –, esse Francisco somos nós. Aliás, era. Como não queremos, no entanto, admitir que a esquerda chegou ao poder e avançou, mas sem trilhar o caminho da decência que protestava, como não aceitamos o fato de que nossa literatura festeja mais do que transcende, como sempre negamos quando nos acusam de repetirmos os erros de nossos pais... Então, enfim, deu-se cova rasa para o Prometido.
Tudo bem que maior parte dos brasileiros nem sabe dessa morte, desconhece esse enredo de amor, ódio e violência, porque é novela que pega somente nos canais estritos do meio literário e redondezas. Canal pago, TV por assinatura. Os coveiros, somos pessoas que não ficam à janela vendo a banda passar, esquecendo da dor. Nós estamos nos quartos, remoendo, dilacerados, fustigando feridas, à espera do bode que expire bocadinho de nossas angústias.
Enquanto seguimos enterrando Chico Buarque sob tanto calhau vencido, terra grossa dos divãs-classe-média que desembarcam nos lixões diariamente, estamos mais próximos dele que nunca. E, quando a grama já estiver crescida, voltaremos para homenagear o morto. Pois, como desejamos que a expiação venha em nossos momentos finais, não toleraremos que os jovens nos julguem como nós julgamos nosso espelho. Narciso arrancará o defunto do caixão, mostrará os seus ossos para todos, para provar como fomos belos, como fomos geniais, únicos.