Pesquisa mostra realidade das travestis de Belém
Trabalho de mestrado em Comunicação registra o universo da prostituição no bairro do Reduto, região central da capital paraense
Samanta é o que algumas travestis paraenses chamam de “barroca”: depois de trabalhar durante anos como prostituta em Belém, é considerada "idosa" para continuar no ramo. Como ela existem muitos travestis que, por volta dos 35 anos, podem ganhar o respeito de um grupo ou bairro e se tornar traficantes de drogas, usando as mais novas como "aviõezinhos", ou, se seguirem por outro caminho, muitas vezes vagueiam solitariamente pelos canais do bairro do Reduto, na região central da capital paraense, procurando companhias.
Foi o que aconteceu com Samanta. Depois de morar na Europa, se envolveu com homens que, segundo ela, não souberam lhe dar valor e nada mais fizeram do que gastar seu dinheiro. Toda sua passagem como Samanta parece ter se perdido em meio à identidade que tanto procurou afastar de si. "Se você quiser me chamar de Alfredo, fique à vontade”, disse ela a Osvaldo Vasconcelos, que se fez perguntar: quem é Samanta?, Ela ainda existe ou deu lugar a Alfredo?
Essa é uma das histórias que foram compartilhadas com Osvaldo Vasconcelos, geógrafo que também se formou em Letras e Saúde Pública. Em sua tese de mestrado em comunicação "Trajetórias (re)vividas", ele procura estudar o universo moldado pela realidade de prostituição de travestis que frequentam o bairro do Reduto, em Belém, sua luta por reconhecimento e suas histórias em busca de identidade. De 48 travestis da região, o pesquisador conversou com 12, algumas delas com os nomes trocados por questões de segurança. Deste número, a maioria delas é negra e parda, e apenas uma entrevistada era declarada branca. Esta é a terceira monografia que ele faz acerca do tema. "Meu estudo começou em 2005 por motivos pessoais, pois tive uma babá travesti que morreu quando eu tinha 10 anos", admite o geógrafo.
Identidade - O bairro do Reduto, explica Osvaldo, há cerca de 20 anos era dominado por michês, travestis e mulheres. Por conta disso, aconteciam muitas brigas entre os grupos. Hoje, travestis são as prostitutas mais presentes, graças a um grupo deixou o trecho da avenida Assis de Vasconcelos com a rua Oswaldo Cruz e desceu para dominar as esquinas do bairro.
O geógrafo ressalta que nesse bairro se formam grupos, em que se desenvolve uma hierarquia de liderança. “As travestis não são homogêneas, não são iguais. As hierarquias são pautadas nas modificações corporais. O silicone é o marcador social da diferença entre elas. Há as mais velhas, as barrocas, que já não trabalham no mesmo ofício; há as que possuem silicone industrial, que é um tipo que pode infeccionar pois adere facilmente ao corpo; e há também as mais respeitadas e que desfrutam do maior poder nos territórios, travestis que já passaram por intervenções estéticas em clínicas especializadas. As iniciantes, que ainda não possuem prótese, são maltratadas e geralmente vítimas de violência por parte de lideranças. Curiosamente, a maior parte delas já esteve nesse estágio. Este era meu objetivo na tese: contar estes papéis hierárquicos e falar da violência das iniciantes, muitas delas menores de idade", esclarece Osvaldo.
Uma situação chamou a atenção do pesquisador. Ao ser questionada sobre “o que é ser travesti”, a resposta de uma das entrevistadas atravessou muitas definições discutidas na área acadêmica. “Ser travesti é uma evolução do homem gay. Eu sou travesti o tempo todo, a sociedade me machuca o tempo todo. A sociedade não sabe que ele é gay, mas sabe que somos travestis o tempo todo”, disse ela.
O geógrafo conta que três das entrevistadas morreram durante a pesquisa de campo, todas vitimadas pela AIDS. Entre elas, ele lembra de Josy Kimberlly. Em 2006, quando começou a desenvolver sintomas da doença, Josy ficou internada no Hospital Universitário João de Barros Barreto, entrando acompanhada de Osvaldo. Depois de se recuperar, arranjou um emprego como doméstica na casa da médica que lhe atendeu. Ainda assim, não foi possível sobreviver ao desenvolvimento do vírus. O triste histórico de violência a qual Josy foi submetida ainda rendeu material para mais um artigo de Osvaldo, a biografia intitulada “Josy Kimberlly – jornada em travessia: gênero, corpo e prostituição”.
Em novembro de 2012, a transexualidade deixou de ser classificada como transtorno mental pelo Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM). A diferença entre travestilidade e transexualidade se dá pelas cirurgias às quais se submetem; transexuais reconstroem os órgãos sexuais, e os travestis apenas performam o gênero oposto. A comunidade LGBTT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais e Travestis) têm se mantido ativa nas últimas décadas em protestos pelo seu reconhecimento e aceitação na sociedade. Segundo uma pesquisa realizada em 2014 pela Organização Não Governamental (ONG) Transgender Europe (TGEU), o Brasil é o país que mais mata transexuais do mundo. No período de janeiro de 2008 a março de 2014 foram 604 mortes registradas como crime de homofobia e violência de gênero.
Desafios - A pesquisa de Osvaldo não se concentra no quantitativo, uma vez que o tema ultrapassa as barreiras das ciências categoricamente analisadas. "Minha primeira opção era trabalhar com um grupo focal, mas pensei nas rixas devido às hierarquias. Se tornou inviável", conta Osvaldo, que logo entendeu como de fato iria compreender a substância da complexa construção de identidades urbanas em Belém: se aproximando cada vez mais dessas composições feitas no vaivém cotidiano das travestis. Seja nas entrevistas ou ao acompanhar o trabalho delas nas frias madrugadas.
"Escolhi utilizar os métodos da etnografia (método utilizado pelos antropólogos baseada no trabalho de campo) com a observação participante, na qual eu interajo com a experiência destas travestis", frisa o geógrafo, que primeiro mapeou os locais com mais frequências do negócio de prostituição para depois entrar em contato com as profissionais. "É difícil entrar na convivência delas, é um ambiente regrado, mas acabamos criando laços", conta.
Esta abordagem é baseada no método do antropólogo Bronislaw Malinowski, autor de "Os argonautas do pacífico ocidental" (1922). No trabalho de campo do antropólogo, entre 1914 e 1918 nas Ilhas Trobriand, Malinowski inaugura uma nova forma de pesquisa etnográfica com comunidades tradicionais da Nova Guiné, onde o pesquisador tem uma participação mais efetiva nas investigações do estudo de grupos, em uma visão próxima do caminho romântico, mas não ao ponto de se deixar levar por ele.
Ainda que motivado por seus próprios pretextos, o estudo de Osvaldo Vasconcelos pode ser considerado uma compreensão de corpo, gênero e identidades, e uma expressão de como as minorias sociais gritam em busca de representatividade. A pesquisa, segundo Osvaldo, foi uma via de mão dupla e garantiu uma visibilidade não estereotipada da travestilidade. São pessoas donas de suas dimensões físicas e emocionais que, segundo ele, querem seus direitos garantidos e acesso a cirurgias e tratamentos hormonais pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
A defesa da tese "Trajetórias (re)vividas: conflitos, tensões e hierarquias na luta por reconhecimento entre travestis que se prostituem no bairro do Reduto", de Osvaldo Vasconcelos, será feita no dia 24 de outubro, no campus Alcindo Cacela da Universidade da Amazônia (Unama).
Por Julia Klautau Guimarães.