A universidade chegou ao sistema carcerário

Grupo de estudantes e profissionais de direito entende que é necessário ir além das teorias jurídicas para chegar a uma realidade de violações atrás das grades

por Nathan Santos sex, 10/06/2016 - 21:30
Líbia Florentino/LeiaJáImagens Estudantes e profissionais de direito se unem em prol dos direitos humanos Líbia Florentino/LeiaJáImagens

Tímida e com um estreito sorriso no rosto, Késsia dos Santos Silva, de 20 anos, chega a uma pequena sala situada nas dependências da Colônia Penal Feminina do Recife, conhecida como “Bom Pastor”. Há quatro meses, a jovem cumpre pena por tráfico de drogas e sonha em sair do presídio, descrito por ela como um local “muito ruim”. No espaço reservado para atender detentas que precisam de auxílio jurídico, Késsia é recebida por estudantes e profissionais de direito e, prontamente, é inserida em um bate papo bem humorado. De repente, toda a timidez inicial vai dando lugar a um sorriso mais largo, deixando a jovem cada vez mais descontraída e com esperança de que, enfim, a liberdade vire novamente realidade em sua vida.

A conversa com os universitários e profissionais durou o suficiente para, minutos depois do início, as lágrimas ganharem o rosto de Késsia. Um choro de felicidade começou logo após a notícia de que a jovem poderia cumprir pena domiciliar, conforme decisão judicial. Grávida de nove meses, Késsia estampou no semblante a felicidade e, ao mesmo tempo, o alívio em saber que deixará de viver atrás das grades para voltar aos braços da família. Moradora de Jardim São Paulo, bairro da Zona Oeste do Recife, ela viverá novamente ao lado do pai e de um filho de cinco anos, bem como poderá esperar com mais tranquilidade o nascimento do seu novo bebê.

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A história de Késsia é mais uma entre dezenas que são vivenciadas pelo projeto de extensão “Além das grades”, composto por alunos da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e profissionais formados em direito. Ao todo, cerca de 40 pessoas deixam seus compromissos profissionais e mergulham semanalmente no universo carcerário do Estado. Oficializada em abril de 2015, a iniciativa tem como objetivo levar assistência jurídica para a população que vive nos presídios estaduais, tendo as mulheres como público alvo inicial. No caso de Késsia, o grupo identificou a possibilidade de a Justiça conceder prisão domiciliar para detentas mães de filhos com até 12 anos de idade. Porém, o Além das grades atua também em outros diversos casos e se preocupa em acompanhar o dia a dia das pessoas beneficiadas, mesmo após o alvará de soltura.

Para a professora-coordenadora do projeto de extensão, Cristiniana Cavalcanti, é gratificante lembrar que, antes de qualquer oficialização acadêmica por parte da UFPE, o Além das grades nasceu de uma ideia dos próprios alunos. A docente ainda entende que o trabalho realizado possibilita aos estudantes a chance de compreender o presidiário não apenas como um criminoso, mas também como uma pessoa que tem direitos a serem respeitados ou que estão na cadeia sem o mínimo de culpa. “É um projeto importante porque se trata de uma resposta da própria academia no sentido de mostrar uma contrapartida que a universidade pode dar de maneira mais efetiva para a sociedade, tanto academicamente, como fora da academia, e para as pessoas que estão no sistema carcerário. Os detentos começam a incorporar a noção que também são sujeitos que merecem ter direitos integralmente respeitados”, detalha.

Enfrentar os dilemas carcerários e ainda buscar o respeito aos direitos dos detentos perante a Justiça, no entanto, também é uma tarefa cercada de embates, geralmente oriundos do preconceito. De acordo com os estudantes, muitos deles são alvos de críticas tanto de colegas da faculdade, como também de familiares. São taxados de defensores de bandidos ou aconselhados para largar as problemáticas dos presídios brasileiros e apenas se dedicar a outros casos. Porém, a professora Cristiniana, diante das críticas, tem uma ideia que vai justamente de encontro às reclamações de quem não conhece o projeto de perto.

“O Além das grades é uma quebra de paradigma, porque a gente volta os olhares a essa população encarcerada e não apenas como uma análise do Direito Penal em si. Quando a gente chega à realidade do sistema prisional, identificamos que há uma necessidade de observância de situações que não são atendidas da forma como a gente imagina quando estamos no plano teórico. É um olhar voltado para a justiça social”, explana a docente.

Mas não existem críticas ou preconceito que impedem a atuação dos estudantes. Para os universitários do projeto, o motivo da prisão de um detento é, de fato, um crime passível de punição, mas, a partir do momento que ele começa a pagar pelo que fez dentro das unidades prisionais, existe a possibilidade, mesmo que mínima, dele voltar para sociedade e começar uma nova vida. Os participantes do Além das grades também têm uma preocupação com o estudante que sairá da instituição de ensino. É o que explicam no vídeo a seguir Alana Barros da Silva, de 24 anos, do oitavo período do curso de direito, e Murilo Correia, que completa o último período aos 23 anos de idade:

Além das grades e dos muros da faculdade

É no contato com os presidiários que os estudantes e profissionais do projeto de extensão vivenciam de perto a realidade do sistema carcerário. Celas lotadas, violência, injustiças e outras inúmeras violações fazem parte de um contexto que pouco contribui para o processo de ressocialização dos detentos. O fato é que o Além das grades não surgiu para resolver todos os problemas dos presídios, mas entrou em atuação para, no mínimo, alertar a sociedade e a Justiça que o sistema é falho. Academicamente falando, todos os participantes concordam que a experiência é enriquecedora e contribui em larga escala para a formação dos universitários.

“A universidade, além do ensino e da pesquisa, também tem a extensão como uma função social. Saímos dos muros das universidades e chegamos ao seio da sociedade através do projeto. Nós constatamos o grande problema que existe dentro do sistema carcerário do Brasil. É dentro dos presídios onde existem graves violações dos Direitos Humanos, que são assegurados pela Constituição Federal. A atuação do nosso grupo identifica diversas irregularidades, desde a superlotação até problemas com a alimentação. Quando a gente faz um atendimento e presenciamos a alegria de uma detenta pela causa alcançada, nos sentimos felizes e com a sensação de dever cumprido”, declara um dos integrantes do Além das grades, Tiago Pereira, de 30 anos, aluno do 10º período da graduação. 

Importante para quem ainda está em sala de aula, a iniciativa também é valorizada por quem já entrou no mercado de trabalho. É o caso de Daniel Cezar de Lima, formado em direito em 2011, e que teve a oportunidade vivenciar o Além das grades desde o início do trabalho. Mesmo tendo concluído a graduação, o profissional reserva espaços na sua agenda de compromissos para atuar no projeto, tanto no atendimento dentro dos presídios, como nos órgãos judiciários responsáveis pelos casos das presidiárias. E além de participar intensamente, ele ainda fez um convite para uma colega de trabalho, que prontamente aceitou. Manuela Muller é outra integrante do projeto que não deixa de contribuir com o que aprendeu na universidade. No vídeo a seguir, o estudante Tiago e os profissionais Daniel e Manuela descrevem com mais detalhes a prática do Além das grades: 

Entre as reeducandas beneficiadas, o sentimento é de agradecimento. Elas enxergam nos “meninos do projeto” os responsáveis pelos poucos momentos em que são tratadas com respeito e que podem vislumbrar um futuro bem longe da cadeia. Muitas delas não reúnem condições financeiras para contratar advogados particulares e, às vezes, encontram barreiras para chegar aos defensores públicos. Por toda a ajuda do Além das grades, o projeto também é visto como um “socorro” para aquelas não têm dinheiro em prol do custeamento de advogados particulares.

No ano passado, o “Além das grades” realizou cerca de 130 atendimentos. As visitas à Colônia Penal Feminina do Recife ocorrem todas as terças e quintas-feiras, geralmente no horário da manhã. O grupo também almeja iniciar atividades nos presídios masculinos, mas tudo dependerá de autorização do Governo do Estado. Interessados no projeto podem entrar em contato pelo telefone (81) 9-8752-7401. Confira uma galeria de imagens do Além das grades:

 

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